A maculada gota
“…nas côncavas mãos, como é de uso,
recolheu água do rio e tais votos lançou para as auras”
Virgílio[1]
Certa vez, nosso planeta foi quebradiço deserto de pedra e lava, então coberto pelo manto gélido de um oceano ainda inócuo. Se a terra firme é composta de partes que dialogam sem abdicar de suas autonomias, neste oceano perseverava o absolutismo do mesmo. Diluídos os limites, neste monólogo a menor das frações continha o todo — a gota d’água continha o próprio oceano, pois nada havia salvo água. Também oceânico é o Belo em Platão, que vê todas as coisas como escombros caídos de uma unidade indivisível para a qual ansiamos regressar. Sua teoria assemelha-se ao ciclo das águas, que liquefeitas lançam-se à terra, em vapor regressam ao éter e em chuva condensam de volta à matéria. E portanto deste absoluto marinho condensou-se, meio bilhão de anos atrás, o primeiro animal: gelatinosa medusa, no Brasil chamada água-viva. Do nada nascida, rompeu com a totalidade, como um degrau que fratura o piso perfeito. Deste primeiro tombo, em atropelo seguiu tudo o que compõe a nossa fragmentária existência. Quem diria haver tanta riqueza num simples lapso desta água primeva cuja perfeição em segredo desejamos.
Incolor, insípida e inodora, a água é de todos os materiais talvez o mais abstrato. Plotino viu no fogo o apogeu das substâncias, pois a tudo transforma em divina fumaça — talvez na água, que modifica a si para assegurar o ciclo da vida, teria encontrado melhor exemplo de metamorfose. Quem nas mãos tenta contê-la logo percebe a sua insuperável fluidez: ao agarrar o deus marinho Proteu, Menelau sentiu-o transformar-se em diversas criaturas para desvencilhar de seu abraço.[2] Espírito de cura, em inúmeras culturas garante a limpeza espiritual que expurga impurezas terrenas, e como solvente universal modula os excessos dos outros materiais para garantir sua correta comunhão.
Mas seriam tais qualidades fruto não de sua origem divina, mas de nossa deficiência sensitiva? Nada que é físico encontra-se livre da implacável teia de circunstâncias que faz, de todas as coisas, singularidades. Tal é a doutrina não só de Platão quanto também de Guilherme de Ockham, cuja audácia metafísica renegava tudo o que carece de concretude: a palavra água, assim, seria delírio linguístico, pois o que de facto existe é uma pletora de águas distintas — neste mundo nada repete-se: tudo é único. Mesmo a gota está corroída em cicatrizes a nós invisíveis.
Em sua exposição Água viva, Rita Gaspar Vieira explora o drama inerente à água, articulando suas diversas facetas para construir objetos cuja essência circunstancial opera temas como memória e identidade, fragilidade e transcendência, tensionando o universal e o particular em obras atravessadas por ausências fundamentais, onde a pureza conserva defeituosas riquezas e a busca pelo perfeito lança a tudo num suspense de silencioso ardor — cria águas-vivas. Mas não há água à mostra: como quase tudo aqui, ela manifesta-se mediante detalhes quase imperceptíveis.
Também da água vem o papel, matéria prima de suas obras. Nas grandes telas-papéis Um e outro mergulho, percebe-se as marcas do piso onde foram moldadas, os delicados movimentos da polpa e as distintas propriedades da argila e do grafite. Longe de serem erros que corrompem a lisura do papel ideal, são imperfeições naturais que outorgam expressão, acentuadas por um processo de manufactura não por inteiro controlado. Lembra tanto a abordagem pós-minimalista, que exibia nas obras o acaso inerente a qualquer iniciativa artística, quanto a arte povera, que promoveu tanto a potência dos materiais preteridos quanto a força dos temas ao além do nosso domínio. Mas aqui não se trata nem de venerar as minúcias da matéria, nem de desprezar as incertezas do etéreo — é a tensão entre ambos que propulsa um tácito drama. Se mesmo a água contém cicatrizes, talvez então estas obras visem atentar-nos à concretude do outrora invisível. Pois como se poderia notar, salvo em sua legenda, serem feitas de jornais de Leiria triturados? As evidências de sua origem estão ao além dos sentidos. Pulverizar o jornal, enciclopédia dos acidentes cotidianos, é abdicar da ideia de domínio sobre o porvir em prol de outra sorte de existência, cujo sensibilidade transforma ausências em presenças. Aqui o papel não é suporte nulo à espera de palavras que outorguem-lhe sentido. Sua própria textura compõe outra linguagem mais delicada e arcana. Explorar o sentido de suas cicatrizes é processo ambíguo, tanto arqueológico quanto inventivo, e não oferta a ilusão da certeza jornalística. Entre o oculto revelado e o evidente omitido, difícil dizer se tais híbridas obras são a gota a cair ou o vapor a subir. Talvez por isso suspendam-se à meia altura. A única tela apoiada à parede é mais longa e desenrola-se abaixo, tocando as escadas declinantes da galeria — não à toa chamada Mergulho.
Abaixo das telas, há no piso da galeria a obra Ensaio para inventário hidrológico, uma série de vasos feitos com páginas do “Inventário Hidrológico de Portugal” de 1975. De disposição caótica, seriam um ensaio do acaso que rege o físico? Suas formas inspiram-lhes um caráter oblíquo embora flácido, caquético e quase hostil. Nas telas, o triturado jornal foi o apagar da rotina. Aqui temos o quase intacto testemunho de uma cartografia cuja concretude histórica é realçada pela argila no interior dos vasos, talvez advinda do solo que representam, descendo assim mais um degrau na queda platónica — tal individuação é também trabalhada na série Outras águas, onde folhas adquirem densidades e volumes próprios ao escapar de livros onde todo papel é apenas planura repetida à perfeição.
Há, entre o inventário e estas bacias hidrográficas, uma metamorfose tanto linguística quanto interpretativa. Por serem vazios, performam aquilo que mapas podem apenas relatar — o árido colapso das paisagens naturais tão frágeis quanto vasos de papel. Ou teriam estas obras natureza mais subjetiva? Leiria é a cidade natal da artista, e 1975 é o ano anterior ao seu nascimento. Seriam o articular das circunstâncias que a formaram enquanto singularidade, na esperança de fabricar o próprio destino? Não mais vasos, mas crânios abertos à espera de uma solidez mental interdita aos que vivem na errância da matéria — pois quem busca sua origem tropeça no trágico deleite da memória, que faz de cada incursão ao ontem a invenção de novo passado. Como um desfile de vasos distintos desprovidos de paradigma. Se nem duas gotas são iguais, por que o seriam estes vasos, coisas perdidas no tumulto mundano onde só persistem fragmentos?
Mas um vaso não se define pelo invólucro, e sim pelo vazio que encerra. Para Lao-Tsé, “é no espaço onde nada há que a utilidade do vaso depende”[3], encontrando propósito não em sua utilidade como suporte, mas numa ausência só cheia quando vazia — também em melancolia nós ardemos, incompletos, pela manutenção do desconhecido. Se os corpos destes vasos são incursões do presente num passado representado pelos mapas antigos, seria o seu vazio uma espera pelo porvir? Ou teria cada um a sua própria ausência tão específica quanto suas formas físicas? Mesmo o nada é algo, professou Empédocles ao notar que um vaso imerso para baixo na água não é por ela preenchido, pois já cheio de matéria invisível.[4] Há aqui uma interessante simetria com as telas, cujas bordas rasgadas evidenciam gestos passados enquanto os vazios dos vasos sugerem eventos futuros — manifesto o declínio, resta indicar a prometida ascensão.
Há, nas telas-papéis, buracos com diâmetros iguais aos vazios dos vasos. Quem sabe não seriam eles o seu modelo, e destino? Na tensão entre a riqueza do distinto e o anseio de comunhão que também pautam a nossa angústia, anseiam retornar ao uno que os gerou, fechando o ciclo metafísico. Mas o desejo pressupõe uma intimidade prévia não ao todo esquecida — como ansiar aquilo cuja existência ignoro? Para Santo Agostinho, quem reza já contém aquilo que procura, “pois eu não poderia estar aqui a não ser que vós já estivesse presente em mim”.[5] Talvez por isso a argila em seus íntimos pareça úmida: também anseiam pela água original donde vieram.
Tal dilúvio será o fim de todo o papel. Dissolver-se-iam os vasos sob o peso de uma água específica — a parte não pode conter o todo, embora busque-o em absurdo. Mas sua fraqueza é sua força: pulsão suicida ou transcendente, sua destruição funda nova etapa onde a polpa deles surgida será matéria-prima de um papel capaz de ordenar o caos. Agostinho realiza um deus-líquido que faz do ausente a sua essência — “as coisas que você preenche ao contê-las não sustentam-te como um vaso suporta o líquido. Mesmo quebrado em pedaços, você não escorreria para fora”.[6] E após o destruir de suas formas singulares, a água manteria-se sólida no ar, pelo vazio transformada como o espírito de quem aprende a ver riqueza onde o outro nada vê.
Água viva, de Rita Gaspar Vieira, está patente na Salgadeiras — Arte Contemporânea até 14 de setembro, com ótimo texto de Ricardo Escarduça.
[1] Virgílio. (2018). Eneida. São Paulo: editora 34, Livro VIII, vv.69-70.
[2] Homero. (2013). Odisseia. São Paulo: editora 34, Livro IV, vv. 455-60.
[3] Lao-Tsé. (1987). Tao-Tê-Ching. Madrid: Ediciones y Distribuciones Alba, Aforismo XI, p. 37.
[4] Russell, Bertrand. (2004). History of Western Philosophy. London: Routledge, p. 61.
[5] Santo Agostinho. (2015). Confessions. London: Penguin Random House, pp. 4-6.
[6] Id., ibid., Livro I, ato 3.