Do you like my vagina dentata? Elizabeth Prentis, Skewer
A mulher é uma aliada. Se há mulheres num grupo, estás safo. Ou safa. Elas protegem-te: da masculinidade tóxica, da violência sexual e de género, dos abusos, da tristeza e depressão. Criam um lugar, um pequeno lugar que nutre a tua liberdade, os teus desejos transformados em comédia trágica, o teu sorriso e o teu desvio. Porque há sempre um desvio enquanto houver uma norma – a heteronormatividade, o arquétipo de género, o estereótipo segundo o qual toda a sociedade se rege
dividindo,
engavetando,
taxonomizando.
A mulher é uma arma de livre e autónoma agência, simultaneamente instrumento e organismo letal dotado de individuação. Na tua tíbia existência, navegando uma adolescência tola e sem defesas, porque és mole e és fraco, a mulher substitui-te. Com o arremesso de uma mala, com os anéis espetados em punhos cerrados, com o grito ensurdecedor de harpia, com um salto alto em riste, pronto a espetar no olho do inimigo. E o inimigo é todo o homem que não sabe ser mulher, que não quer ser mulher, nem por um mísero segundo, porque quer manter a sua integridade intacta e porque ele, indiferente à diferença dos outros corpos, não consegue essa coisa cada vez mais rara: empatizar, porque
bros b4 hoes,
sempre,
sempre.
Sempre.
Nota de meme: tudo é uma arma, desde que usado corretamente. E as mulheres sabem-no.
Não há nada de sagrado numa mulher. Toda a literatura romanesca é uma mentira, um engodo visual, erótico, textual e contextual masculino. Toda a poesia romântica é uma armadilha, salvas raras exceções – essas, que seriam muito mais modernas e realistas do que platónicas, nostálgicas e arrebatadas. Não quer dizer isto, contudo, que todos os mitos ligados à mulher não tenham um quê de verdade, ou não tenham um fundamento válido, porque a mulher é um monstro e a mulher é uma bruxa e a mulher é o medo irracional da ginofobia e do complexo de castração.
Porque a mulher, enfim, é poder
poder que nunca tiveste,
poder que nunca ousaste ter.
Skewer, de Elizabeth Prentis, é uma ode a este poder feminino e às trevas de monstros aliados que consegue invocar, personificar e emular. Não há pudores, nem medos. Os objetos e esculturas que habitam a exposição são criaturas tetânicas, que magoam, que ferem. São aberrações do passado e do futuro, personagens femininas metamorfoseadas no belicismo e usuras a que as várias sociedades e civilizações as sujeitaram. Espinhos, garras, lâminas afiladas e cortantes, tudo uma sucessão de objetos que testam a atenção do espectador e a sua inteireza física.
Traumas exteriorizados e tornados públicos. Cicatrizes suturadas e expostas ao ar. Deambulamos pelos vazios abertos, pelo espaço que esses corpos estranhos permitem entre si. A carne é rosa; a pele, de papel; os espinhos, rígidos; as criaturas, ao mesmo tempo frágeis e possantes, de massas nebulosas, pernas pesadas e fundações firmes. Nada é leviano. Tudo é profundo. Como uma ferida escarafunchada para lá da derme, da epiderme, raspando artérias e veias com unhas de gel até ao osso. Skewer é a latência da stigmata feminina nunca representada na arte, marcas de guerra e salvação, individual e coletiva, de uma missão emancipatória entre as mulheres sobre o nó górdio atado pelos homens. É a liberdade que a Natureza lhes deu – os espinhos exógenos que criaram, os dentes, as unhas em bico, cientes do custo, mas cientes também de tudo o que podem alcançar. O título do folheto que a artista desenvolveu para acompanhar a exposição é claro: “Um Darwinismo Distópico”.
Ao mesmo tempo, como a artista afirma, é uma investigação da polinização cruzada entre a biologia e a arte e uma entrega delirante a um futuro distópico, em que os corpos femininos se fazem de adições complementares, hardwares e softwares. Está-se perante uma biologia e uma natureza ontológica e epistemologicamente revistas para aceitarem a prótese, o acessório metálico, silicoso, sintético.
Skewer é um autorretrato, uma autopsicografia de Prentis, que reflete os traumas individuais e coletivos nas suas peças. É o espelho e a forma de uma vivência no/do mundo, que não é a sala de estar dos pais, que exige defesas, exige preparação, autoconhecimento e conhecimento da sociedade em geral. Sem ser condescendente e paternalista, Skewer é uma lição, um aviso, mas também um grito de empoderamento feminino e uma prática de individuação sexual. Dispositivos antiviolação, cuecas de castidade, correntes, adereços transumanistas, patentes para produzir mecanismos capazes de injetar narcóticos no pénis de violadores – as ferramentas estão todas lá. E as personas sexuais também.
Do ponto de vista plástico, tudo assenta num experimentalismo radical, que cruza desenho, escultura, cerâmica e instalação. A série de objetos escorados na parede são exercícios físicos de força e endurance; o metal é cortado, desenhado e riscado como se estivéssemos perante uma folha de papel. Os espinhos projetados da parede, os dentes que se projetam de bocas e das vaginae dentatae têm o vidrado opalino da cerâmica comum e o brilho rugoso dos minerais presentes no barro. As esculturas ganham uma presença teatral. Materialidades completamente distintas (cabeleiras postiças, folhetos de supermercado, metal, poliestireno expandido, esmalte) encontram formas de existir plenas, num maximalismo ao mesmo tempo libertador e surpreendente.
Está-se, portanto, perante um exercício catártico, que atravessa as políticas e micropolíticas no feminino, que mascara os dramas e tragédias psicossexuais, os tabus, para revelar o que há de real por detrás dos mitos e nas estórias pretéritas, que pugna e se debate por um manifesto feminista transversal. Skewer joga com a psicologia social, refuta os estereótipos, serpenteia pela imaginação ancestral, as neuroses individuais, que viram coletivas, e subverte as relações de poder vigentes. Skewer é um mito do futuro, onde as mulheres já não têm de ser dóceis nem adotar, como refere Clarissa Pinkola Estés em Women Who Run With The Wolves. Myths and Stories of the Wild Woman Archetype (1992), a postura de uma “criatura disfarçada”. São as heroínas preteridas, cantadas finalmente.
Porque não há metáforas possíveis para uma experiência sexual violenta. Há a dor de um espeto cravado no ventre. E a dor de um falo trincado logo a seguir. Aos que não quiserem a castração da vagina dentata, o crânio espicaçado pelo salto alto, os arranhões das unhas aguçadas, sejam aliados.
Assim saberão: o corpo guarda memórias.
Skewer, de Elizabeth Prentis, está patente na Balcony – Contemporary Art Gallery até 18 de setembro. O texto é de Luísa Santos.