O Observatório dos Rios em Torres Vedras – a expedição performativa e poética do coletivo Guarda Rios pela hidrogeografia torreense
Há uma pergunta primordial na nascente do projeto Observatório dos Rios, iniciado em 2023 pelo coletivo Guarda Rios: “o que é um rio?”. Neste pequeno ensaio, propomo-nos a refletir sobre a questão que a abarca e desconstrói, nas suas múltiplas dimensões – “o que é o Observatório dos Rios?” –, com especial enfoque na residência artística e apresentação pública que, durante uma semana, ocupou a arena ao ar livre do Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras (CAC), em junho, e partiu de um trabalho de campo prévio (e simultâneo), numa espécie de expedição pela hidrogeografia do concelho, incluindo os rios Sizandro e Alcabrichel. Atualmente composto pelos artistas visuais Francisco Pinheiro e Nuno Barroso, vindo este das ciências, o coletivo tem convidado artistas e investigadores de diversas áreas para criar narrativas/dramaturgias e uma série de ações performáticas adaptadas a cada ecossistema fluvial e a cada realidade local por onde tem passado de Norte a Sul de Portugal, com a digressão da Odisseia Nacional do Teatro Nacional Dona Maria II. Daqui se pressupõe já a transdisciplinaridade do projeto, começando pela ligação à antropologia e etnografia nos métodos de trabalho que envolvem a sua criação e investigação, passando pelo referido trabalho de campo, a observação participante dentro e através do território, uma abordagem interpretativa da cultura e a compreensão desta como uma teia de significados que se cruzam desde o passado até ao presente e constroem o futuro.
As obras de arte ou ações artísticas, e os seus autores, não são “ilhas” isoladas do mundo quotidiano nem do artístico. Neste sentido, o percurso de um artista ou coletivo parte, frequentemente, de respostas ao contexto (em) que vive e/ou de uma constante exploração dos meios em que trabalha. Sobre o tema principal do Observatório dos Rios, explícito no nome, verifica-se uma sintonia com o atual zeitgeist da sociedade e mundo contemporâneos, marcados por uma crescente sensibilização e investigação sobre problemáticas da ecologia e sustentabilidade da vida na Terra, como a preocupação com a escassez de água doce no planeta, a procura de estratégias para melhorar a sua gestão e a proteção dos ecossistemas fluviais. Incentiva-se ao debate, à transdisciplinaridade e criação de redes de partilha com entidades e comunidades de cada hidrogeografia, agindo no coletivo para encontrar soluções de mitigação deste problema. Neste âmbito, conceitos como o “pós-natural” reavivam-se, pela recusa da divisão entre natureza, cultura e outros campos da vida, como a tecnologia e a arte, contrariando uma visão antropocêntrica do mundo e uma romantização da natureza, bem como propondo uma visão cosmopolítica que reconheça a heterogeneidade da realidade e defenda um ativismo contra as alterações climáticas e o extrativismo excessivo, acelerados por uma globalização insensível ao seu próprio impacto sobre a Terra e em que o capitalismo transforma em negócio até iniciativas de suposta preservação da natureza. A par deste conceito, posições filosóficas e éticas como a biofilia, iniciada pelo ecologista Edward Wilson nos anos 1980, no livro Biophilia, que defende uma conexão emocional inata entre os humanos e a natureza, voltam a entrar no domínio de diversas disciplinas, com enfâse na arte.
Em termos artísticos, parece haver no Observatório dos Rios um cruzamento entre reminiscências da performance coletiva ou happening, como os do grupo Fluxus ou do Black Mountain College, e movimentos mais recentes enquadrados no artivismo e marcados pela politização da arte através da consciencialização sobre temas sociais e/ou ambientais incorporada na experiência estética. Desta interseção, está subjacente no projeto o objetivo de democratizar e deselitizar a arte, fazendo-a “descer à terra”, na tentativa de dissipar o seu carácter aurático e reconectá-la com a vida, incentivando a participação do público na(s) obra(s) de arte, direta ou indiretamente, mas também recriando, acrescentando e concentrando-se nos próprios media artísticos, neste caso em estreita ligação com o tema dos rios, não só pela narrativa em torno da vertente científica da sua formação e da história das fauna e flora que os rodeiam, que neles e deles vivem, mas também pela utilização de recursos naturais deles obtidos (de forma sustentável) para a criação de algumas das peças que integraram a instalação ou ambiente que materializou o Observatório dos Rios em Torres Vedras. Exemplo disso são a cobertura tingida com pigmentos naturais em Castelo Branco, usada como toldo em diversas atividades; as pedras recolhidas junto a rios, em que os artistas escreveram palavras, que tiveram a dupla função de indagar a cronologia do mundo, num dos trechos da performance participativa, e de construir um litofone; os sedimentos colocados em tubos de ensaio gigantes (de acrílico) para simular a zona hiporreica dos rios; e os tecidos tingidos, a água e a areia que formam a Mesa-Rio, em que se demonstra a sua formação. Umas têm a vertente estética aliada a uma vertente funcional e pedagógica, outras imprimem um carácter de improvisação e um papel de presença na(s) narrativa(s) sobre os rios, e a sua função (tanto estética como efetivamente “útil”) pode variar conforme as necessidades e o fluir das atividades participativas e do processo de criação.
Uma boa metáfora para esta instalação e performance(s) seria a invocada pel’As Metamorfoses, de Ovídio, uma das referências literárias do coletivo Guarda Rios – uma “explicação” da formação e contínua transformação do mundo, onde a realidade, a mitologia e a imaginação se misturam, sobressaindo uma combinação entre contadores de histórias e pintores (ou construtores) de cenários. Do encontro entre a experimentação característica do método científico e uma abordagem experimental própria da arte conceptual, nascem experiências estéticas imbuídas de uma simbiose entre sensações provocadas pelo(s) cenário(s) do Observatório dos Rios e memórias desencadeadas pelas mesmas (ligadas à relação com os rios e os organismos a eles conectados, mais próxima e saudável no passado). Essa sinestesia envolve ainda uma ponte entre técnicas artísticas/artesanais de tradições milenares – a feltragem e as “esculturas” de lã trazidas à residência artística pela artista Ana Rita de Arruda, os instrumentos musicais artesanais, a construção simples e rudimentar dos cenários com o expressionismo abstrato dos tecidos orgânicos e a utilização de materiais como a madeira – e novos media e/ou linguagens da arte contemporânea (fotografia, vídeo e música eletrónica), em favor de um ambiente lúdico que facilita a vertente pedagógica do projeto e se traduz também numa opção estética do coletivo para transmitir uma mensagem e a criação que a constrói.
Essenciais para o sucesso do projeto têm sido as parcerias com municípios, instituições e associações de cada hidrogeografia, destacando-se no caso torreense o apoio do CAC e do grupo Somos Comunidade do ATV – Académico de Torres Vedras, que possibilitou a realização das atividades com o coro Música sem Idade, o grupo de teatro do GADV (Gabinete de Apoio à Deficiência Visual) e turmas dos 5º e 8º anos, além da pequena expedição pelos rios do concelho com João Raimundo, da Divisão Ambiental da Câmara Municipal de Torres Vedras. Ao primeiro, o Guarda Rios propôs cantar uma recriação da música Milho Verde, de José Afonso, com nova letra e novo título – Lodo Verde –; com o segundo, privilegiaram-se audição, olfato e tacto, através de exercícios que incluíram o litofone, a lã pura e a transformada em arte têxtil por Ana Rita de Arruda, sempre acompanhados de reflexões sobre a cadeia de relações com os rios e concluídos com a narração de Francisco Pinheiro da história da enguia, espécie que já existe há mais de 65 milhões de anos, mas receia extinguir-se em breve, “não por temer o desaparecimento da minha espécie, mas por temer que os humanos falhem em ver o seu caminho aqui no planeta, desde sempre apontado pela lua e o movimento da água”. O público infanto-juvenil percorreu os vários dispositivos do Observatório dos Rios, com atividades mais ativas, lúdicas e pedagógicas, comemorando simultaneamente o Dia do Ambiente. Do brainstorming sobre o que é um rio, do trabalho conjunto e síntese das atividades realizadas e da reflexão sobre temas cruciais e preocupantes, como a progressiva salinização da água e dos solos e os malefícios das barragens, nasceu uma obra aberta, retomando o conceito de Umberto Eco, permeável a algum improviso e assim mais livre e fluída, em que, além do cariz didático, científico e estético, se denotou a afetividade e celebração entre a pequena comunidade criada naquela semana, no microcosmos da arena do CAC. Nesta experiência imersiva, a “poética da obra em movimento (…) instaura um novo tipo de relações entre artista[s] e público, uma nova mecânica da perceção estética, uma diferente posição do produto artístico na sociedade”.[1]
O coletivo Guarda Rios continua a digressão do Observatório dos Rios em setembro, levando a Serpa e Ermesinde os mistérios fluviais, como poetizados nos versos de Hart Crane: “O Rio ergue-se do seu longo leito, // Sustentado totalmente pelo sonho, um clarão cor de mostarda / Torturado pela história, a sua única vontade – correr!”.[2]
[1] Eco, Umberto. (1989 [1962]). Obra Aberta. Lisboa: Difel, pp. 93-94.
[2] Crane, Hart. (1995 [1930]). A Ponte. Lisboa: Relógio d’Água, p. 45.
Super 8 Torres Vedras from GUARDA RIOS on Vimeo.