formas dos futuros ao redor
Adotando uma posição coletiva e emancipatória, a exposição formas dos futuros ao redor, com curadoria de João Laia, em exibição na Galeria Municipal do Porto, propõe uma aliança de diferentes posições, narrativas e agências que, numa afinidade inconformista, se materializam no agora, projetando novas possibilidades e promovendo a emergência de múltiplos futuros. Reagindo, resistindo e contrariando o contexto atual de crises permanentes – permacrise – ao incorporar e celebrar narrativas plurais, a mostra revela-nos um imaginário no qual se antecipam futuros possíveis para conceber o tempo presente como um momento de transição e de transformação.
Num apelo coletivo à imaginação, a exposição celebra o que está por vir, mediante uma proposta curatorial que desafia narrativas dominantes ao adotar “uma perspectiva queer expandida”. Criar uma comunidade que inclua mais coisas do que as que já estão identificadas e conhecemos e imaginar outras formas de estar e existir no mundo são ações que perpassam a exposição sublinhando o conceito expandido de queer, proposto por João Laia, enquanto processo de mudança. Subscrevendo o teórico e académico cubano-americano José Esteban Muñoz, segundo o qual “Queer, se quer ter ressonância política, tem de ser mais do que um marcador identitário e articular uma futuridade intrépida”, e a leitura da geógrafa Natalie Oswin da investigação de Kath Browne, para quem “queer propõe um desafio à norma ao operar além dos poderes e controlos que impõem a normatividade, provocando maneiras radicais de (re)pensar, (re)desenhar, (re)conceptualizar, (re)mapeamentos esses que poderiam refazer corpos, espaços e geografias”, Laia conecta estas formulações com a ideia de alteridade de Rosi Braidotti, agrupando e abraçando os “Outros sexualizados, racializados e naturalizados” numa afinidade não normativa. “Queer desta perspetiva, abraça tudo isto: queer é uma forma não normativa de estar mais do que uma entidade específica (…) É queer como uma forma de unir e não fragmentar”.
A organicidade e multiplicidade na seleção dos artistas e trabalhos refletem um dos objetivos do curador: reunir pela diversidade, não se tratando de colecionar agências, posições ou histórias iguais, mas de “agrupar funções que o que mais têm em comum é não serem normativas, construindo-se um coletivo através dessas diferenças”. Recorte do projeto forms of the surrounding futures, curado por Laia para a 12ª edição da Bienal Internacional de Arte Contemporânea de Gotemburgo (2023), e depois da passagem por Kunsthalle Münster – onde se encontra patente até 4 de agosto –, formas dos futuros ao redor tem na Galeria Municipal do Porto a sua terceira adaptação, ao reunir onze artistas do elenco original de vinte cinco, sublinhando o curador como “interessante dentro da narrativa que se propõe, que a exposição não se torne num objeto fixo e se materialize de formas diferentes e em tempos diferentes”.
Como uma introdução temática e sensorial à exposição, destacamos a videoinstalação de três canais Pervasive Light (2021) de Sandra Mujinga, onde, num espaço dominado pela escuridão, observamos a figura sombria da protagonista que aparece e desaparece ao ritmo de música eletrónica. No limiar entre a visibilidade e a invisibilidade, a obra mergulha-nos num cenário afrofuturista, através do qual investiga noções de presença e o potencial político da ausência, ao evocar a hipervisibilidade e a invisibilidade enquanto condições centrais para perceções e experiências da negritude.
Da escuridão da primeira obra, regressamos à luz, mas não no seu estado natural. Numa aproximação ao teatro e jogando com a luminosidade do exterior – reduzindo-a – foram colocados filtros nas janelas da GMP para a criação de um “ambiente luminar, ao mesmo tempo familiar e estranho”, que interessava ao curador na experiência da narrativa. Sob uma luz sombria, como um eclipse, seguimos o nosso percurso atraídos pela cor amarela, enérgica, febril e radioativa da instalação site-specif On Venus (2019) de P. Staff. Inundando uma pequena sala, de chão espelhado, a luz amarela cria uma atmosfera misteriosa que se intensifica pela combinação de efeitos sonoros e sucessão de imagens que compõem o ensaio visual do artista. Numa sensação psicadélica, observamos imagens de abusos contra animais e uma ode poética à vida queer num paralelismo com Vénus, planeta cujo ambiente hostil parece oferecer possibilidades de transformação na criação de futuros mais justos.
Cenários ambientais, a relação com a terra e a ancestralidade são explorados em Atomic Garden (2018) de Ana Vaz e Spell on you! (2020); Spell on Me! (2024) de Sámi Outi Pieski, obras que abordam ciclos de vida e de morte, a resiliência da natureza e as cosmologias holísticas enquanto metáforas para imaginar futuros. A catástrofe nuclear e ambiental de Fukushima e a sua virtual invisibilidade é explorada no filme experimental de Ana Vaz, no qual ensaia uma “reflexão estroboscópica” sobre transmutação, metamorfose e sobrevivência, num êxtase e correlação entre flores, plantas e fogo de artifício. O ritmo visual e auditivo da obra propagasse à delicada e dinâmica instalação de Outi Pieski que, com sua expressão frágil e poética, incorpora a técnica artesanal Sámi Duodji como ato de luta, resistência e identidade de um povo. Encenando um confronto entre uma miríade de nós tecidos à mão em linha preta e uma composição paralela de cores vivas, as pinturas tridimensionais e flutuantes compõem uma paisagem que evoca a história de invisibilidade de um povo indígena, um regresso à ancestralidade e a importância da relação entre humanos, animais e natureza.
Suspensos entre o sonho e a realidade, Anche di notte (1) (2022) de Rodrigo Hernández – dois grandes painéis de latão martelados manualmente pelo artista – mergulha-nos numa atmosfera de contemplação silenciosa e devocional que evoca a magia crepuscular. Flutuando entre estrelas e planetas, um vampiro e figuras humanas, suavemente delineados sobre fundos dourados e luminosos, oferecem-nos uma perceção imaginativa do mundo, numa sugestão do artista de um horizonte que ainda está por chegar. Próximo, ocupando um lugar central, contemplamos a instalação antropomórfica e híbrida Yabba (2017-2024) de María Jerez, presença abstrata animada, fumegante e respirante que, em constante mutação, se materializa como uma paisagem vulcânica, um corpo indefinido, moldada por tecidos brilhantes. Questões de género, diversidade sexual e invisibilidade são exploradas no ensaio em vídeo de Luiz Roque, S (2017). Filmada no metro de São Paulo, como se nos quisesse revelar o que se esconde por baixo da Avenida Paulista, a obra a p/b, poética e dicotómica traduz através da linguagem visual da dança uma mensagem de revolução proveniente do manifesto Rumo a uma Redistribuição de Violência Desobediente de Gênero e Anticolonial de Jota Mombaça. O cariz político de S, o desejo por novas utopias e mudanças sociais, encontram o diálogo perfeito com Neon (2018-24) do coletivo KEM, letreiro cujo triângulo cor-de-rosa dentro de um círculo verde convoca o símbolo da luta queer, servindo também como marcador para um espaço seguro.
A relação entre humanos e máquinas e a reflexão sobre questões de domínio e submissão são exploradas na instalação Orphan Dance (2018-24) de Osías Yanov, que, entre um ginásio, um escritório e um clube noturno, nos oferece um espaço ritualístico e meditativo, tendo como protagonistas aspiradores-robô com que os visitantes podem interagir.
O interesse de João Laia por exposições imersivas que trabalhem de forma holística com o corpo é evidente ao longo da mostra, onde o som, a performance, o sonho e a contaminação nos permitem abordá-la como um organismo vivo, capaz de provocar múltiplas experiências, como uma espécie de overdose sensorial. Propondo formas cognitivas, emocionais e sensuais de envolvimento, as obras em exibição operam de forma corporal com o espectador, despertando todos os sentidos e influenciando o modo como podemos imaginar outras narrativas e formas de estar no mundo. Através de jogos de luz e paisagens sonoras, o visitante é convidado a participar numa peça de teatro, em que o seu corpo é tão central quanto as obras em palco. Esta ideia de contaminação e contágio, potenciada pelo cruzamento e sobreposição de som das várias obras – à semelhança do que acontece na vida – subsiste no segundo momento expositivo no piso superior da galeria. Adotando uma forma híbrida, a exposição coletiva integra no seu interior Nave Geo-Celestial, a primeira exposição institucional e individual de Joana da Conceição em Portugal. Propondo aproximações mágicas ao desconhecido, e a pensar a vida como um fluxo contínuo em que o corpo se dissolve, a mostra introduz-nos em ambientes multissensoriais nos quais o espetador é convidado a ativar os seus sentidos. Num apelo coletivo à imaginação, mergulhamos num palco imersivo e performativo onde se celebra a multiplicidade viva do universo em obras como Drifters, que “ecoa o fundo oculto dos oceanos e a sua relação com o movimento das placas tectónicas e Solipsismo Cósmico”, instalação multimédia que nos convida a desacelerar, a abandonar o corpo e a contemplar pinturas abstratas em diálogo com luzes e paisagens sonoras coreografadas. Assim como a exposição joga com a ausência de fronteiras e com os limites entre os espaços, também as pinturas alquímicas e metamórficas de Joana da Conceição, que compõem os núcleos Rave da Terra, Terreiro e Index, expandem-se para fora dos suportes, ganhando autonomia, numa metamorfose constante que nos hipnotiza, aguçando a nossa capacidade de imaginar cosmologias e mundos por vir.
formas de futuro ao redor está patente nas Galeria Municipal do Porto até 15 de setembro de 2024.