A Moeda Viva nas Galerias Municipais de Lisboa – Galeria Quadrum
venho para te cortar os
dedos em moedas pequenas e
com elas pagar ao coração o
mal que me fizeste.[1]
A Moeda Viva é a mais recente exposição a decorrer na Galeria Quadrum. Com obras dos artistas Ângela Ferreira, António Contador & Carla Cruz, Cildo Meireles, Fábio Colaço, Filipa César, Filipe Pinto, Isa Toledo, Isabel Cordovil, Leonor Antunes, Lourdes Castro, Luís Paulo Costa, Mauro Cerqueira, Nuno Henrique, Pedro A.H. Paixão e Rita GT, contou com a curadoria de Maria do Mar Fazenda e tem como tema central, como o próprio título indica, o dinheiro. O motivo para a conceção desta curadoria não é – importa esclarecer – uma crítica ao financiamento das artes ou ao mercado da arte. Assenta, antes, na exploração da predominância que este símbolo de troca desempenha na nossa sociedade e as diferentes formas com que nos relacionamos com ele.
Esta mostra, com obras de diferentes gerações, reconfiguradas ou não, pertencentes a colecções museológicas, privadas ou institucionais, que acontecem ser caso único no percurso do artista ou tema central e recorrente, explora as diferentes expressões do dinheiro, do seu valor, e apresenta várias dimensões reinventadas desta convenção.
É sabido que o dinheiro é conceito central na economia e nas finanças da nossa sociedade e que tem várias formas e funções. Esta medida comum de valor, que permite que os preços dos bens e serviços sejam comparados de maneira mais ou menos consistente, liga sujeitos, objetos, e sujeitos com objetos, por precisamente os “descartar de todos os seus atributos, os reduzir a uma única qualidade e assim tornar tudo, toda a complexa e incomparável tonalidade em monótona quantia”[2].
“O dinheiro é um meio, um material, um exemplo para a apresentação das relações entre os fenómenos mais superficiais, realísticos e fortuitos e os mais idealizados poderes da existência, as mais profundas correntes da vida individual e da história”[3] e é, por isso mesmo, frequentemente explorado na produção artística, seja em tom de crítica, sátira ou com o propósito de nos fazer refletir sobre a sociedade de consumo, a desigualdade económica e o materialismo. No caso de A Moeda Viva, esta parte do ensaio de Pierre Klossowski La Monnaie Vivante, de onde é tomado de empréstimo o título – como Maria do Mar Fazenda nos esclarece na folha de sala – e do filme L’Argent (1983) de Robert Bresson, filme que adapta o conto O Cupão Falso de Tolstói. Não tem como ponto de partida as duas diferentes abordagens, mas dá, de alguma forma, continuidade à exploração e inquietação do que representa esta forma de câmbio. Trata-se de um conjunto de obras de artistas que, podendo ou não se terem focado diretamente no tema nas suas investigações e criação, foram, inevitavelmente, influenciados pelas realidades financeiras do mundo da arte, seja por meio da reflexão da complexa interação que têm com a criatividade artística, seja por meio da desaprovação ao sistema. Exemplos de produções que foram “contaminadas” com o espírito de crítica são o caso de Lourdes de Castro, Ângela Ferreira e Isa Toledo, aqui representadas com as obras Sombras e chocolates (moedas) (1974), S/ Títullo (da série Diamantes) (2018) e Pick a card da série One in/A/Million/Aire (2021), respetivamente.
Enquanto Fábio Colaço nos dá as boas vindas com 500€ (Welcome (500€), 2019), Cildo Meireles apresenta-nos notas e centavos de zero (Inserções em Circuitos Antropológicos – Zero Dollar Zero Cent, 1974 – 1978 Notas, moedas) para comprarmos o que quisermos. Fica clara, num olhar imediato e pela diversidade de materiais e configurações, a exploração transversal do tema através da vontade de denunciar e tratar o absurdo e a profanação do dinheiro. Pensemos na questão que o artista Cildo Meireles levanta: “A arte é prostituta. Ela está onde o dinheiro está”[4] – mas qual é ou deveria ser a dimensão real desta forma de câmbio?
A acompanhar a folha de sala, encontra-se um texto de Filipe Pinto, publicado na revista Economia Social, onde se pode ler que o dinheiro, enquanto substituto do valor das coisas, tem “carácter pernicioso e um pouco absurdo se se pensar que estes pedaços de papel ou metal constituem um dos principais fitos da maioria das acções humanas”. A ideia de que um simples papel, objeto frágil, convertido em valor contabilístico, ocupa lugar central nas decisões do quotidiano e nas discussões políticas globais, é trazida para a A Moeda Viva, com olhar indagador e provocador. Há uma espécie de culto que aqui é evidenciado, culto ao dinheiro e às suas diferentes formas que adquirem poder divino capazes de tudo, tornando a sociedade obcecada e dependente numa tentativa de concretização dos seus desejos. Isabel Cordovil, depois de ler sobre o problema do vício, cria, durante este ano, a obra Schrödinger – 99 pequenos quadrados (raspadinhas) de esperança consumível, 99 chances de permanecer desconhecido[5] que nos lembram da obsessão e submissão perante o valor do dinheiro e aquilo que ele pode comprar.
Presente na exposição estão também obras do projecto Finding Money de António Contador e Carla Cruz. Construido em conjunto desde 2011, levanta a questão de que, fora do uso de circulação monetária, o dinheiro adquire um valor totalmente diferente através de um reaproveitamento artístico. Questiona, tal como Filipa César, Mauro Cerqueira, Luís Paulo Costa e outros artistas aqui representados, os nossos sistemas de consumo e o impacto que têm na forma como nos relacionamos.
“Seja por afinidade de diálogo, ou por meio de tensões ou discrepâncias”[6], o conjunto das obras mencionadas e as restantes que fazem parte da exposição pretendem levantar a questão do valor real e do caráter simbólico deste símbolo de troca, mas cria, também, renovadas possíveis narrativas através das aproximações e confrontos entre as diferentes obras no espaço expositivo.
A Moeda Viva pode ser visitada até dia 8 de setembro nas Galerias Municipais de Lisboa – Galeria Quadrum.
[1] Hugo Mãe, Valter. (2018). publicação da mortalidade. Excerto do poema Contabilidade. Assírio & Alvim, Porto Editora, pág. 59.
[2] Simmel, Georg. Hauptprobleme der Philosophie. Gesamtausgabe, 6, p. 714.
[3] Id. Ibid., p. 12.
[4] O artista em brasil.elpais.com.
[5] Isabel Cordovil no post do Instagram a propósito da exposição.
[6] Folha de sala.