Desenhos modelados e modulares — Terracota(s) na Biblioteca Camões
Na “história” da representação, o momento inaugural de cada forma de fixação e reprodução do real respondia à hierarquia das artes, na qual a pintura e o desenho se posicionavam na dianteira da escultura e da cerâmica, por seu turno “herdeiras” e “discípulas” da subsequente vontade de modelar aquilo que apenas se objetivava traçar. Na História Natural, Plínio, o Velho (23 d.C – 79 d.C) relata o “mito da origem da pintura”, não obstante, aparentemente a narrativa informa senão sobre a origem da cerâmica e do desenho: “ao utilizar também a terra, o ceramista Butades de Sicião foi o primeiro a descobrir a arte de modelar os retratos em argila; passava-se isto em Corinto, e ele deveu a sua invenção à sua filha que se tinha enamorado por um rapaz; como este ia partir para o estrangeiro, ela contornou com uma linha a sombra do seu rosto projectada na parede pela luz de uma lanterna; o seu pai aplicou a argila sobre o esboço, e fez um relevo que pôs a endurecer ao fogo com o resto das suas cerâmicas, depois de o ter secado.”[1] O que está em causa no mito de Plínio é, na verdade, a origem do retrato e a consagração artística do desenho e da cerâmica, por intermédio da mimesis.
Em Terracota, Marta Castelo recusa a hierarquia, a divisão, a história e mesmo a representação nas artes, ao expor desenhos (modulares e) modelados em barro. Sobre as quatro paredes de uma sala do palacete novecentista Valada-Azambuja — que hoje acolhe a Biblioteca Camões — erguem-se variações de volumes geométricos harmoniosamente dispostos e suspensos estaticamente na parede. Por sua vez, a parede torna-se na folha branca que é pontuada pelos módulos de barro de forma tão equilibrada que relembra projectos pictóricos teosóficos e teológicos — desde as ilustrações de Francisco de Holanda em De Aetatibus Mundi Imagines à investigação artística mística de Hilma af Klint — bem como algumas composições pitorescas Wassily Kandinsky pautadas e ritmadas por música. Proposto este paralelismo, importa destacar que — para além da óbvia e ímpar predisposição modelar — as composições que erguem a exposição de Marta Castelo emergem sobre uma única expressão cromática — a terracota —, ao contrário dos exemplos anteriores onde a pluralidade pigmentar é um componente elementar da mise-en-scéne responsável por nortear o projecto a representar.
A artista recua à modelagem em argila pré-mimesis —isto é, pré-representativa—, mas também recua a uma condição pré-utilitária. Retorna à elementaridade do criação por meio da modelação, ou da cerâmica por meio dela própria, i.e. do barro pelo barro. Há um respeito pelo material que se verifica a vários níveis: desde a escolha por um acabamento não envidraçado, à cozedura a temperaturas mais baixas (dentro do espectro do possível) e mais próximas de fornos primitivos, à produção de um conjunto de módulos em formas tão elementares quanto o mínimo manuseamento do material permite — Marta Castelo é tão cúmplice do barro quanto ele dela. Enquanto recua à essência arcaica e primitiva do material, fá-lo de forma tão natural quanto animista, de modo que, da mesma forma que compreendemos a agência humana sobre o barro — tendo como exemplo os módulos onde formas extremamente geométricas, irregulares mas harmoniosas garantem manipulação humana, enquanto que, nos outros módulos onde este rigor e precisão não existem, persistem ao invés sinais, indicações ou impressões dos dedos da artista, sublinhando e evidenciando a memória e a reciprocidade do material, que é tão autónomo quanto submisso —, também compreendemos a “agência” do barro sobre a artista. Ele surge sob a simples condição de existir — não há nada que justifique a escolha do barro para a modelação de um desenho —, porém é isso que sucede e concebe esta instalação, pela simples razão de que o material pode. Esta analogia entre o desenho e a modelação em argila permite regressar ao mais elementar da criação artística e abrir caminhos selados pelos axiomas modernos da industria das artes.
Salomé Lopes Coelho, investigadora no Instituto de Comunicação da NOVA, na sua tese de doutoramento, O gesto da travessia e o contacto com o ritmo vital: Sobrevivências do ekstasis no cinema, explicou-nos a cumplicidade entre a agência humana e a rocha, ou a pedra, na produção de pinturas rupestres em cerimónias xamânicas dos povos indígenas da América do Sul: “as pinturas partem da própria superfície da rocha, dos seus relevos, para desenhar [uma imagem]” [2]. Evoco esta alusão, uma vez que também se verifica no processo criativo de Marta Castelo, ao respeitar a disposição, “agência” e essência do material. Este exercício “pós”-moderno que rompe com divisões, dualismos e convenções abre um espaço liminar que permite desenhar com material modelar. Da mesma forma, também joga com a nossa percepção, onde a mise-en-scéne da tridimensionalidade se converte naquilo que sempre simulou — a possibilidade da realidade.
Terracota, de Marta Castelo está patente na Biblioteca Camões até 31 de Julho de 2024.
Nota: A autora não escreve ao abrigo do AO90.
[1] Plínio, o Velho. História Natural, XXXV, p. 151.
[2] Lopes Coelho, Salomé. (2020). O gesto da travessia e o contacto com o ritmo vital: Sobrevivências do ekstasis no cinema. Tese de Doutoramento em Estudos Artísticos, Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, p. 144.