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“O poço engolia homens aos bocados”: sobre a exposição-instalação vídeo “…depois de pulsar mais uma vez com os sentidos todos a terra em redondo” de Paulo Mendes

Ouvimos a toada que assinala o dealbar do hino dos mineiros consagrado a Santa Bárbara, sua padroeira. [1] Transcrevo os primeiros versos:

Nas Minas de Aljustrel
Trai larai larai lai lai la
Morreram muitos mineiros, vê lá
Vê lá companheiro, vê lá
Vê lá como venho eu

Relata-se, ao embalo da desembainhada melodia, uma série de episódios que só o estoicismo permite musicar. Sangue de camaradas, colegas que perecem fatalmente ao ofício da extração do minério: feridas que não saram. É a partir destas feridas, e de outras, que o artista e curador Paulo Mendes apresenta na Sala Estúdio do Teatro Aveirense … depois de pulsar mais uma vez com os sentidos todos a terra em redondo, título retirado do romance de 1943 Volfrâmio, de Aquilino Ribeiro, num ano em que a cidade de Aveiro é Capital Portuguesa da Cultura e em que, claro, se assinala o cinquentenário da Revolução de Abril – tema indissociável à expansão mineira na região Centro e Norte de Portugal, na década de 1940. A aparente neutralidade nacional imposta pela ditadura fascista e a venda de volfrâmio, essencial ao fabrico de armamento, quer aos Aliados quer à Alemanha Nazi durante a Segunda Grande Guerra, é o ponto de partida deste trabalho com uma forte componente documental.

Esta exposição-instalação vídeo, com a duração de 1h15m, é protagonizada por Fernando Gomes, antigo mineiro das Minas do Pejão, em Castelo de Paiva. Uma figura transtemporal na medida em que atravessa os três tempos que compõem esta obra. Percorre os anos 50/60, clímax da exploração mineira em Portugal do Estado Novo; atravessa os anos 80, o período pós-revolucionário, através de registos VHS da Empresa Carbonífera do Douro; chegando ao presente, essencialmente através dos planos que mostram as instalações dessa mesma empresa em avançado estado de ruína, por vezes alvo de uma irónica invasão da natureza. Nesse edifício perecido, Fernando Gomes, vestido com a indumentária típica dos mineiros, explora um arquivo ao qual provavelmente nunca teve acesso enquanto operário. Por entre os destroços arquitetónicos, ou o anunciar deles, jazem os escombros da memória. Perante esta desorganização patente, somos convidados a pensar o arquivo de um ponto de vista anárquico, mas não por isso menos documental.

Estes diferentes tempos percebem-se nitidamente. Se as supracitadas ruínas nos garantem um pé no tempo presente, rapidamente outros planos de imagem desta obra nos levam para o passado, que neste caso se duplica, como já referido. Fernando Gomes assume assim uma espécie de avatar do espectador e é através dele, por meio da sua presença ora notada ora fantasmática, que vamos interagindo com os planos, por vezes fortemente plásticos, sempre projetadas numa escala imponente. É de realçar a forma como estas atmosferas alinham nas preocupações ontológicas da própria fotografia. São lugares de aparente imobilidade, de uma certa presença pressentida ou de uma ausência notada, ampliados pela sonoplastia de uma intensidade por vezes voraz, sempre que vemos imagens das instalações da Empresa Carbonífera do Douro no seu estado atual. Quando os planos dão a ver a própria mina esta característica sonoplástica é subtraída, dando lugar ao som da água que, cintilantemente, a percorre. Sobra uma sensação de incerteza e constante periclitância. O silêncio revela-se pérfido, o som mostra-se confrangedor.

Durante alguns segundos, certas imagens projetadas são aglutinadas à leitura, na voz de Fernando Gomes, de determinados excertos que integram a publicação que acompanha este vídeo-instalação. Um objeto, propositadamente semelhante a um jornal, no qual Paulo Mendes coloca fragmentos de textos de autores como Aquilino Ribeiro, Jacques Rancière, Jonathan Crary, Pedro Araújo ou Émile Zola. Há também espaço para relatos escritos do período de exploração mineira no Estado Novo, bem como passagens do Diário do Governo igualmente dessa altura. Excertos do jornal O Pejão figuram como legendas de imagens dos anos 50 e 60, cortadas tipograficamente. São passagens laudatórias, que pretendiam nitidamente, na época, branquear as práticas obscuras ligadas às condições de trabalho destes operários, alinhando na estratégia de propaganda típica do regime que viria a tombar em 1974.

A mina é assim mostrada como um espaço de luta, nos 50 anos de Abril e perante o galopar generalizado da extrema-direita. Paulo Mendes explora novamente, no seu percurso investigativo, questões ligadas ao proletariado e ao trabalho operativo, trazendo-o a debate à luz da arte contemporânea, como fez anteriormente em projetos como Trabalho Capital (Centro de Arte Oliva) ou Ensaio para uma Comunidade – Retrato de uma coleção em construção (MAAT).

… depois de pulsar mais uma vez com os sentidos todos a terra em redondo pode ser visitada até dia 31 de julho na Sala Estúdio do Teatro Aveirense.

 

[1] A citação no título deste artigo faz referência a Germinal (1885) de Émile Zola, excerto presente na publicação que acompanha esta exposição.

Daniel Madeira (Coimbra, 1992) é licenciado em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Estudos Curatoriais pelo Colégio das Artes da mesma universidade. Coordenou, entre 2018 e 2021, o Espaço Expositivo e o Projeto Educativo do Centro de Artes de Águeda. Atualmente, colabora com o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC).

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