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Técnica mista sobre papel #1 – A saudosa pintura d’O Estádio

Estamos em plena época de competições desportivas. Na realidade, um bocado como as estações do ano, os eventos desportivos são cíclicos e não há maneira de lhes escapar.

Perante esta evidência, dei por mim a lembrar-me de uma das mais incríveis pinturas sob a alçada da temática desportiva de que me lembro: a pintura de um estádio, que estava logo na entrada do ido Café Estádio em Lisboa.

Não será da memória de todos. Talvez seja até de poucos. Os que frequentaram o Café Estádio, na Rua São Pedro de Alcântara nº7, enquanto existiu. Não se sabe precisar em que circunstâncias, adivinhando-se que o destino tenha sido semelhante a muitos outros, um dia O Estádio fechou.

Tinha mesas em tons aquosos pastel bem bonitas com cadeiras de contornos a imitar Thonet. Sem logotipos, os tampos das mesas eram de fórmica duradoura e os assentos das cadeiras em plástico a imitar pedra. O Estádio tinha o ar soturno de que em breve não nos lembraremos. Era fresco porque não era propriamente luminoso, tinha clientela fiel, cafés e imperiais, e água das pedras com gelo e limão. Não se pode pedir muito mais. Era um local de locais, de quem não era local de residência, mas sim dos que residiam a todas as horas do dia e da noite no Chiado. Ali passei tardes depois das aulas da faculdade, havia sempre lá alguém. Dava por mim a sentar-me de maneira a estar no enfiamento visual da porta, mas porque o que queria mesmo ver era a pintura. Nunca saberei se o Estádio-pintura deu origem ao nome do Estádio-café, ou vice-versa. Não deixa de ser interessante imaginar que o dono do café se encantou com uma pintura tão simples e radical, que decidiu homenageá-la com o nome do café; ou se por outro lado, veio a encontrar aquela magnífica pintura com um estádio representado, e decidiu levá-la para o seu estabelecimento. Ou ainda, se a pintura foi uma encomenda especial para ali, ou prenda de algum ex-aluno das Belas-Artes de Lisboa influenciado pelas vistas picadas de Luc Tuymans. Esse é o ponto deste texto. É uma pintura de autor anónimo e data desconhecida, que é magnífica, e que podia ser fruída num ambiente propício à languidez do olhar. Sem restrições.

Tratava-se de uma pintura em formato horizontal, enquadramento habitual das representações paisagísticas. Representava um estádio de futebol vazio, campo relvado verde com as linhas brancas, entorno em tons terrosos, e uma bancada do que parecia ser um pulpito. Tinha uma composição intrigante, na medida em que a vista do estádio era aérea, mas próxima o suficiente para lhe reconhecermos pormenores e uma certa noção de perspectiva. Uma vista picada, vista de pássaro. Mostrava ainda um pouco de céu, num tom que batia bem com os tampos das mesas. O estádio representado, podia ser um arquétipo da ideia que fazemos destas infraestruturas. Mas ao que parece era de um estádio que existe e que nos é familiar: o Estádio Nacional, também conhecido por Estádio do Jamor. Tem uma importância relativa, porque não era aí que residia a sua força pictórica. Era sim, o facto de se entrever um estádio vazio, que convocava uma mudez cristalina na própria da pintura. Como se se estivesse por cumprir, numa respiração suspensa. A pintura captava esse momento de expectância: o estádio silencioso, antes de o vermos a atingir a sua vocação — ser utilizado. Mas é precisamente pela falta de qualquer referente humano que esta pintura era tão boa. Havia uma sensação de imensidão no relvado verde-garrafa. Não se situava qualquer escala real naquele estádio. E não precisava. Porque O Estádio-pintura, vivia n’O Estádio-café. Um sítio em que o bulício do balcão, as conversas espirituosas e o burburinho habitual, complementavam a sonoridade que a mudez do quadro representava. Nesta época desportiva de eterno retorno, são muitas as vezes que me recordo de uma das mais belas pinturas anónimas que tive o prazer de desfrutar, sem concessões. Se alguém souber do seu paradeiro, chute daí.
Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO90.

Luísa Salvador (Lisboa, 1988) é artista visual e investigadora. É doutora em História da Arte Contemporânea na NOVA FCSH, tendo sido bolseira da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia (2015-2019). Tem Mestrado em História da Arte Contemporânea da NOVA FCSH (2012) e Licenciatura em Escultura da FBAUL (2009). Paralelamente a esta atividade, desenvolve a sua prática artística. Expõe regularmente desde 2012. Foi vencedora do Prémio Jovens Criadores 2018 na categoria de Artes Plásticas. A par da sua prática artística desenvolve também uma atividade escrita, entre textos teóricos e crónicas. Fundou em 2018 a publicação trimestral “Almanaque — Reportório de Arte e Esoterismo”, da qual é editora. Vive e trabalha em Lisboa.

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