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O berço de argila

No início de suas Metamorfoses[1], Ovídio escreve que no princípio de nosso mundo houve um dilúvio que deu origem a um grande pântano. Nesta argila aquecida ao sol, todas as coisas foram gestadas, incluso tu, admirável Píton, serpente colossal e nêmesis de Apolo. Pois que lugar, salvo a lama em sua assombrosa fertilidade, poderia ter gerado tal criatura? E muitos outros prodígios do lodo brotariam. Os egípcios, idólatras das cheias do Nilo, viam-no como a matéria-prima do paraíso pantanoso por eles chamado Aaron, o Campo dos Juncos. E se também aos antigos estóicos a lama era o princípio de tudo o que há, talvez não à toa tenha a civilização surgido no solo húmido entre Tigres e Eufrates, no barro a moldar macias pólis semelhantes aos templos de argila do grandioso império africano de Mali, que ocupou a Guiné-Bissau, cujo litoral pantanoso é a terra do povo Balanta.

A sua cultura é o tema do documentário Fogo no Lodo, de Catarina Laranjeiro e Daniel Barroca, obra que articula a sexta exposição do ciclo Território chamada O Chão é Lava!, por eles curada na Fidelidade Arte. De início, Fogo no Lodo parece focar no estado sociocultural dos Balantas, após a guerra colonial que expulsou o exército português e proclamou a independência da Guiné-Bissau. No entanto, o seu tom político é apenas a camada externa de um plano mais profundo e misterioso desta realidade, a nós revelado por um filme que não se contenta em só documentar, mas também interpreta, na ânsia de aceder à essência e compreender as míticas ressonâncias deste mundo.

A sua história, como nas Metamorfoses, começa com uma imensa chuva e um longo cultivo. Se para tantas culturas é o dilúvio o apocalipse que encerra um mundo para outro criar, então ver os agricultores revirarem lama quente para inundar o arrozal é como testemunhar o primeiro plantio da história, quando entre grãos emergiria o dorso da Píton. Vemos, ao invés, um formigueiro cuja perturbadora abundância assemelha-se aos monstros de outrora. Este tom épico aproxima o banal do sublime e transforma o quotidiano desta sociedade num drama fascinante. Instruímo-nos num regime psíquico distinto da cultura moderna, onde humanos convivem com criaturas primordiais como caranguejos, nenúfares e crocodilos, e profetas sentados na lama desenham sonhos visionários num idioma arcano, pois o mundo que haverá de decifrá-los ainda está por nascer.

Há dois destes desenhos na exposição, ambos de Victor Bor, um dos poucos profetas da recente religião Kyangyang. São pequenas espirais de incontáveis variações dispostas num campo de forças que recorda a volátil energia das aves em revoada. Há uma ténue semelhança tanto com a arte do arabesco e da caligrafia islâmica, principal religião da Guiné-Bissau, quanto com alguns esquemas simbólicos ocidentais de teor místico. Seria esta escrita o monstro surgido da lama? Sua caótica anatomia, ilegível aos não-iniciados, é no entanto em intuição compreendida pelos profetas. São como a visão de um estranho mundo que se elabora nas consciências mais sensíveis, pois ainda subtil demais para manifestar-se na matéria. Também na obra de Daniel Barroca, Uma montagem de atrações, percebi os gaguejos de um demiurgo febril que visa compor a estrutura de um novo real: sua imensa série é composta de variações do mesmo motivo, linhas retas em marcador e linhas vacilantes de grafite a compor volumes um tanto bizarros, jamais consolidados. No reino da la,ma nada cessa de se formar, e ambas as obras, expostas em diálogo, conservam esta incompletude e rústica expressividade típica do drama de quem busca revelar algo grandioso ainda impreciso. Mas o que para Barroca é exercício estético de livre assimilação artística, para Bor é a psicografia que guarda todo um futuro de um povo. Na mesma sala há também uma pletora de fotografias de Ramon Sarró e Marina Padrão Temudo, que nos apresentam toda a riqueza artística do Kyangyang, que visa mediar a experiência humana nesta nova topografia espiritual. As imagens convergem uma sofisticada arquitetura plástica com uma simplicidade gestual para pulsar com a força de um mundo em construção.

Tal renovação promove uma ruptura com a linguagem instituída, que pode apenas revelar o passado. Portanto, entre a escrita profética do amanhã e o silêncio atual das longas sequências do filme, há também os relatos dos Balantas que relembram a violência dos brancos na guerra colonial. Em Ovídio, o dilúvio é resposta divina ao declínio de uma civilização outrora pacífica tornada violenta. Teria a guerra estimulado a tempestade que abre a película? No filme, o branco, tão mencionado, jamais é visto. Entidade anterior ao início deste mundo, é também um de seus agentes formadores. As fotografias de José Estima abordam a tragédia deste contacto, onde soldados portugueses posam em tendas precárias com baionetas na cama e garrafas de vinho no lodo. Seu néscio orgulho lembrou-me o triste fim da Píton, quando o deus Apolo fuzila o monstro em mil flechas — na estreiteza de seu entendimento, menosprezava o que desconhecia. O purismo clássico não lhe permitia perceber a infindável potência do monstro, a suprema alteridade que tem tanto a ensinar mas segue vista com suspeita por quem não se quer questionar. A Europa – que, ao invés de aprender, sempre se impôs aos costumes de outras nações –muito cultivou a devastação do outro e a decadência de si. Mas se a lama, também símbolo da destruição, é cicatriz da lógica colonial, também é promessa de infindos futuros: a vida à espera do seu molde final. O drama Balanta é justo habitar este estendido ínterim. No filme, há uma pomba que evoca a ave branca de Noé, mensageira do futuro pós-dilúvio. Mas, aqui, encontra-se presa por um barbante: o novo mundo custa a nascer e o antigo tarda em morrer. O pântano é o território das transições. Resta saber ser o Balanta capaz de sublimar o ardor da crueldade e imaginar outra sorte de deslumbres a nós ainda interditos.

Os aspetos socioculturais orientam as duas salas iniciais, de obras criadas por africanos emigrados à Europa, sendo a primeira a única sala a abordar cenários por inteiro urbanos. No hibridismo característico deste choque cultural, CV TEP narra curtos episódios da animação francesa Lascars, mas ao invés de acentuar o conflito e subverter as imagens originais numa narração que as ironize, o artista acaba por reforçar o humor escatológico do conteúdo original. Já Sara Santos apresenta Manta Sintomática, bordado em tons escuros e formas naif a representar símbolos da hostilidade urbana oriunda da desigualdade social, e três globos de neve com edifícios dos subúrbios de Lisboa, de densa ocupação imigrante. A animação, o bordado e o globo são também símbolos da fantasia infantil e da nostalgia, este doce idealizar de um passado perdido que é tão comum no exílio e que aqui cria um instigante contraste entre a inocência das formas e a rispidez de seu conteúdo. Na segunda sala, uma série de curtas gravados em Europa mas com narrativas situadas em África transitam entre o real e o fictício, e o saudosismo da sala anterior transforma-se num saudoso sarcasmo. Exibidos em smartphones, símbolos da omnipresente cultura de massas satirizam as relações entre a cultura africana e o assédio ocidental. A acentuada presença da natureza cria um senso fronteiriço de uma sociedade ainda não por completo integrada, com espaço tanto para a autenticidade regional quanto para a credulidade permissiva.

E assim compreende-se o circuito invertido da exposição: a sua história começa pelo fim, das consequências às causas. Entre lembrança e invenção, aos poucos abandonamos o tempo da cidade para aceder à origem mítica de um povo onde, em eternos ciclos, misturam-se o fim e o começo. Ao ritualizarem as estações de seca e cheia, os Balantas transcendem-nas em símbolos de morte e renascença, e renegam o tempo linear do suposto progresso moderno. A disposição circular dos cómodos expositivos, ao estimular a costura entre a última e a primeira sala, subverte as nossas interpretações iniciais e replica este senso de perpetuação típico das instâncias mais largas da existência.

E, no entanto, o fim já se aproxima. Se a democracia é como lama – pois, de todos os sistemas, é o mais maleável –, os rumores de guerra civil que sucedem o frágil processo eleitoral da Guiné-Bissau, também retratado no filme, alimentam o incêndio que encerra a narrativa. Seria este fogo resultado da violência que, como em Ovídio, será apagado pelo dilúvio que inicia o filme, em mais um dentre os tantos ciclos da exposição? Os estóicos também professaram que ao fim o fogo a tudo consumiria, para das cinzas surgir outro cosmos. Não à toa vi, em Retrato de Inverno numa Paisagem Ardida, filme de Inês Sapeta Dias exposto na terceira sala, o nascimento de um mundo: as primeiras gotas de chuva num bosque queimado, e novos córregos construindo-se sobre um berço de cinzas. Também rios tinha o bosque de antanho, mas aqui se ensaia um novo desenho de águas, semelhante ao delicado improviso presente nas obras Kyangyang, que visam superar o eterno retorno do mesmo.

Talvez por isso a única obra situada ao além de qualquer sala, no espaço aberto da galeria entre o fim e o começo da exposição, seja um símbolo de transcendência: um espectro de Victor Bor. A sua forma fantasmal aflora, mediante dobras, do papel plano — como novo reino a emergir do leito pantanoso. Coberto pelo idioma Kyangyang, lembra as línguas inauditas dos anjos ou mesmo o aspeto mágico de esculturas antigas, em cuja pedra escreveu-se crípticos encantos. Como o mundo das águas nascido, mantém-se num instável balanço entre potência e fragilidade: pois papel, cada gota é um dilúvio e cada brasa, um incêndio. Cabe a nós assimilar a sua mensagem antes que mais um fim se imponha sobre a potência do precário começo.

O Chão é Lava!, com curadoria de Catarina Laranjeiro e Daniel Barroca, está patente na Fidelidade Arte até o dia 30 de agosto.

 

[1] Ovídio. (2019). Metamorfoses. São Paulo: Editora 34, pp. 63-77.

Tomas Camillis é autor e pesquisador baseado em Lisboa. Escreve narrativas fictícias e ensaios no contacto entre arte, filosofia e literatura. Possui mestrado em Teoria da Arte pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nos últimos anos participou de pesquisas, lecionou cursos em institutos culturais, auxiliou na organização de simpósios e publicou em revistas especializadas. Atualmente colabora com o Serviço Educativo do MAC/CCB e com a revista Umbigo.

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