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Retrospetiva de Teresa Milheiro “1984”: A rebelião no campo de batalha do corpo

A exposição individual de Teresa Milheiro intitulada 1984 decorre na Galeria Zé dos Bois, no centro de Lisboa, até 20 de julho. A obra da artista é um ato insurgente de rebeldia, composta por 90 peças que vão desde 1988 até aos dias de hoje. O primeiro piso da Zé dos Bois tem quatro salas ocupadas com a sua extensa retrospetiva. Há anéis denominados Obsessive controlling tools, pulseiras Pressure, um colar chamado Desperately looking for a wrinkle, pulseiras de dedos bicudos que evitam o roer das unhas e um colar que diz: “Be botox, be fucking beautiful”. O trabalho de Milheiro é crítico e às vezes radical, encarando o corpo como um campo biopolítico.

A primeira sala recebe-nos com os dentes do colar The aunt’s cow wears braces. Os enormes dentes de uma vaca são ordenados e revestidos com aparelhos. Teresa Milheiro é joalheira, mas os seus conhecimentos de ortodontia revelam-se tão bons como os do seu próprio ofício. Não há um único dente desalinhado. Aplicou os padrões de beleza humana em partes de uma vaca morta. É algo radical, humorístico e chocante. É-nos dito muitas vezes nos anúncios de dentistas e pastas de dentes que um sorriso confiante abre todas as portas. É como se os dentes tortos mantivessem essas mesmas portas fechadas e uma pessoa com dentes desalinhados não pudesse ser confiante ou sequer sorrir.

Há ainda o colar Transmutations que brinca com a anatomia e as pedras preciosas. É uma mandíbula onde estão cravados quartzos e ametistas. O maxilar é transformado eletricamente no eterno abraço do cobre. Milheiro utiliza ossos e dentes apesar das suas qualidades incómodas. As pessoas não gostam propriamente de usar uma mandíbula no corpo. Os ossos são para ser enterrados na terra, longe dos vivos, não podem andar por aí a trazer à memória a inevitável morte. É inquietante e angustiante. O trabalho de Milheiro é simples e os seus símbolos universais. Não se trata de uma exposição destinada exclusivamente ao público artístico, mas sim de um desafio a qualquer pessoa.

Em 1984, Orwell traça uma sociedade assente no controlo e na vigilância, em tudo semelhante à União Soviética. A vontade coletiva encontra-se submissa e apaixonada pelo Big Brother, o grande líder com bigode à Estaline. A exposição de Milheiro não tem qualquer amor pelo poder instituído nem pela submissão coletiva. O colar Spy on I, com dezenas de globos oculares pendurados, remete para a vigilância. O 1984 de Milheiro é uma paisagem sombria repleta com imagens de sombrias celas de tortura. É perturbador e suscita a reflexão sobre os atuais sistemas políticos em todo o mundo. Segundo a Freedom House, só 84 em 195 países são livres. A Freedom House foi criada em 1941 com o objetivo de alertar para a ameaça fascista e, desde então, monitoriza o estado da liberdade e da democracia no mundo. A democracia é complicada e exige pensar e trabalhar uma grande quantidade de informação. A mente humana prefere a simplicidade. Essas escuras celas de pesadelo existem no mundo atual e multiplicam-se a cada político extremista que chega ao poder. Os objetos e joias de Milheiro mostram como seria viver num país não democrático.

A exposição passa pelas quatro salas do primeiro andar da galeria. Cada uma delas é diferente, sobretudo a cozinha antiga em mármore rosa. Todas as obras dialogam com o espaço e entre elas. É uma viagem ousada por salas que poderiam muito bem ser celas prisionais. Cada divisão parece ocultar um tema confidencial, uma história diferente. A entrada da galeria abre-se para a rua, fazendo a ponte entre a exposição e o Bairro Alto. Na terceira sala de 1984 encontramos Triunfo dos Porcos, uma série de brincos de prata criados à semelhança dos marcadores para orelhas de gado. Nesta obra, como em muitas outras, Milheiro recorre a números ou palavras. A maioria dos brincos desta série é deixada em branco, mas alguns têm gravados números de anos significativos, como 1984 e 2020, 2021. Os dois últimos assinalam os anos do nosso trauma coletivo, uma recordação da dura realidade vivida não há muito tempo. Os marcadores de gado apontam também para o coletivismo, para o facto de pertencermos à mesma tribo ou sermos marcados pelo mesmo dono.

Do outro lado do muro, estão narizes amarelos em vidro fundido. Cada um deles tem um tamanho e uma forma únicos. Parecem comentar os tempos da COVID-19, quando uma lufada de ar era potencialmente fatal. A série de narizes não tem nome, o que a deixa aberta a incontáveis interpretações. É uma representação complexa que pode apontar para a respiração como fonte de vida e para o olfato como elemento de atração ou repulsa. Pode também apontar para padrões de beleza. Há narizes bonitos, outros feios.

A sala final é parcamente iluminada, o teto é arqueado com tijolos vermelhos. As paredes estão revestidas a cinzento escuro. As obras de Milheiro recebem uma ligeira luz amarela, a única possível. Os olhos ajustam-se rapidamente. Há combinações de instrumentos médicos e seringas na parede. Os instrumentos parecem pertencer a um médico soviético de 1984. Criam uma ténue fronteira entre a cura e a tortura. A estranheza instala-se, provocando uma sensação de potencial dor e sofrimento. Faz-me recordar a minha primeira visita ao museu das celas do KGB na minha terra natal, em Tartu, Estónia. A prisão situava-se na cave de um cinzento edifício de apartamentos, mesmo ao lado da casa da minha avó.

Nas redes sociais, o texto da exposição inclui os seguintes trechos: “A instância biopolítica, a violência, o controlo, a alienação, a obediência, a insufiência, a subjetividade, a insatisfação, a docilidade, o sobreviver e o querer ser”.

Tudo isto existe na obra de Milheiro. A sua voz crítica faz-se ouvir em 1984. O seu trabalho é audaz, inapelável e merece ser visto. Agarra-nos e não conseguimos desviar o olhar, mesmo que queiramos.

Em 1984, Milheiro criou um mundo onde a joalharia não é só ornamento, mas uma revolta e uma tomada de posição para manter a liberdade de espírito e de ação. É uma força da natureza a ter em conta. A sua voz não é branda, a pedir o que é seu por direito, mas a voz ousada de uma artista a reivindicá-lo através da linguagem da joalharia. A exposição é comissariada por Natxo Checa e Manuel Costa Cabral. 1984 é uma justa homenagem a Teresa Milheiro, que foi também uma das fundadoras da Galeria Zé dos Bois, há 30 anos.

A exposição insere-se no âmbito da segunda Bienal de Joalharia Contemporânea de Lisboa. A edição deste ano centra-se na joalharia política e na joalharia do poder. O trabalho de Milheiro tem vindo a ser político desde o início. A sua vasta exposição individual dará uma forte voz a este evento onde mais de 250 artistas de todo o mundo mostram o seu trabalho. A coragem de Milheiro em 1984 é contagiosa. Leva-me a apresentar uma queixa na câmara municipal. Lembra-nos que é necessário revoltarmo-nos, afirmarmo-nos, darmos o nosso contributo e criarmos uma obra individual, feita a partir do âmago do nosso ser. Exatamente como é a obra de Milheiro, inteiramente sua.

A exposição decorre até 20 de julho, de segunda a sábado, das 18:00 às 22:00, na Galeria Zé dos Bois.

Kaia Ansip é uma artista de joalharia da Estónia que, ocasionalmente, também escreve. Estudou joalharia e ferraria na Academia de Artes da Estónia e concluiu o mestrado em 2022. A sua dissertação final foi sobre os devastadores incêndios florestais em Pédrogão Grande, onde vive e trabalha. O seu trabalho e o seu coração estão com a terra. Ansip também estudou Filosofia na Universidade de Tartu. Em 2024, recebeu o prémio Bergesio por escrever sobre joalharia.

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