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Mapa de afetos

Mu seke (musseque), título da exposição de Renée Gagnon, patente na Sociedade Nacional de Belas Artes, é uma palavra que deriva do Kimbundu, língua africana falada no noroeste de Angola e que significa “terra vermelha”. É utilizada para referir os terrenos arenosos que circundam a cidade e onde cresceram, desde o séc. XVIII, os bairros que albergam famílias antigas, que ali vivem de longa data, e os que foram e vão chegando.

Esta mostra, composta por fotografias, mas também por documentos e um vídeo/documentário, tem como tema central as construções periféricas da cidade. São registos capturados entre 1972 e 1976, resultantes do fascínio da artista pelas cores e formas destas casas que formam bairros, da vontade de mapear o labirinto de ruas e afetos, os caminhos simultaneamente sólidos e frágeis, de reaproveitamentos, transformações e resistências. É em 1974 que Gagnon recebe a bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian, mas a investigação documental e artística começara dois anos antes, com o projeto intitulado “Paliçadas dos Musseques de Luanda”. Regressa a Luanda em plena Guerra Civil, e dá continuidade à investigação fotográfica que tem, também, caráter documental e sociológico. São fotografias que retratam uma história de precariedade, mas, também, de resiliência, a história de uma periferia, de uma comunidade com espírito próprio e que pode – e talvez deva – propor uma reflexão sobre o passado, o presente e os efeitos das crises políticas, económicas e sociais.

“O fotógrafo é uma versão armada do solitário caminhante que perscruta, persegue, percorre o inferno urbano, o errante voyeurístico que descobre a cidade como uma paisagem de extremos voluptuosos”[1]. Renée Gagnon, através da sua prática artística, persegue mas também preserva, denuncia e consagra. Em Mu seke 75, o mundo passa de estar lá fora para estar dentro. Percorremos, nesta exposição, através de fotografias analógicas digitalizadas, uma realidade distante, uma cidade que foi crescendo, de bairros que se foram expandindo, transformando-se em verdadeiros labirintos. Sem fronteiras definidas, ou aparente ordem, são composições complexas em constante transformação e adaptação, com uma grande diversidade de materiais que eram recuperados. São prova de um empurrar, de uma exclusão, mas também de um ritmo profundo, próprio, animados pelos materiais que, juntos, erguem refúgios. Por uma energia de libertação ao mesmo tempo, cosmopolita e de escape ao controlo e opressão.

“O olhar do fotógrafo profissional, sôfrego e superiormente obstinado, é um olhar que não só resiste à classificação e à avaliação tradicionais dos temas, como busca, de forma consciente, desafiá-las e subvertê-las”[2]. Através das fotografias a preto e branco, com uma atmosfera melancólica, Gagnon remete-nos para a memória, para a sobrevivência. Há uma ligação quase mágica entre a artista e o espaço, é a respiração do mundo que se sente, uma marca de um povo, da condição e do engenho que a artista imortaliza. Barthes diz-nos que “cada ato de captura e leitura de uma fotografia é implicitamente, de uma forma recalcada, um contato com o que já não existe, ou seja, com a morte (…) a fotografia como um enigma fascinante e fúnebre”[3]. Cada fotografia é a eternização de um plano, de um esquema, de uma composição que desaparece, seja pela própria transformação dos materiais, seja pelo crescimento e adaptação necessária consequente deste movimento constante, que pulsa num mapa informal e auto-produzido, que gravita, com um plano próprio, em torno do centro urbano. “O que me exalta nas fotografias é o roubo – aquele roubo abrupto, resguardador, defensivo – às forças expansivas do tempo. Vejo ali o máximo de poder centripador”[4].

Formas geométricas, proporção, caos e equilíbrio, Gagnon trata, neste projeto, a epiderme do tecido urbano visível. São fotografias de planos de chapas, madeiras, portas e janelas que formam linhas e intercepções. Imagens que nascem da realidade dos dois universos – local e colonial, e que são prova de um espaço próprio, rico, cultural e humano, que ferve e se expande. É a “riqueza da plasticidade estrutural desta cidade informal”[5], mas ao mesmo tempo com ordenação própria, que atrai Gagnon. O emaranhamento dos objetos que são acumulados, martelados, readaptados. Cores que se imaginam gastas, de materiais que dão lugar a outros.

Histórias e retratos sobre o mundo “e o mundo em frases, em linhas fosforescentes, em texto revelado, como se diz que se revela uma fotografia ou se revela um segredo”[6]. Mu seke 75 revela, talvez, o segredo da configuração de um espaço para o “espírito revolucionário, inspirando uma geração de poetas, autores e cantores”.[7]

 

[1] SOTANG, Susan. (2004). Sobre a Fotografia, Ensaios. Companhia das Letras, p.33.
[2] Idem, p. 44.
[3] BARTHES, Roland. (1981). O grão da Voz, Sobre a Fotografia. Brasil.
[4] HELDER, Herberto. (1968). Apresentação do rosto, poema Os Ritmos 8, p. 67.
[5] Maria João Teles-Grilo no texto que acompanha a exposição, O neoplasticismo da auto-construção nos anos 70, em Luanda, p. 3.
[6] HELDER, Herberto. (1998). Cinemas. In: Relâmpago: Revista de Poesia, n º 3, pp. 7-8.
[7] Texto na exposição, da autoria de Renée Gagnon.

Maria Inês Augusto, 33 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) como estagiária na área dos Serviços Educativos e trabalhou durante 9 anos no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada e actualmente desenvolve um projecto de curadoria de exposições de artistas emergentes. Tem vindo a produzir diferentes tipos de textos, desde publicação de catálogos, textos de exposições a folhas de sala. Colaborou recentemente com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas 2023.

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