Os corpos submersos de Luísa Jacinto e Nicolas Floc’h
Encontram-se a decorrer, no MAAT, duas exposições que contam com a curadoria de João Pinharanda: Shining Indifference de Luísa Jacinto e Mar Aberto de Nicolas Floc’h. Aparentemente distintas, as exposições aproximam-se na exploração da cor e do submerso, num exercício de mostrar e dar corpo ao que não é visível.
Na Cinzeiro 8, sala já conhecida por dar espaço a artistas portugueses que desenvolvem trabalho com caráter instalativo e transformador, está patente a Shining Indifference – conjunto de obras de Luísa Jacinto que resultam de um longo trabalho de investigação e pesquisa, que têm como tema central o que é a pintura e quais os seus limites. Com obras de novas linhas de trabalho, a exposição é, num olhar imediato, um convite a entrar num universo cénico, labiríntico, de cor e corpos suspensos que convocam a ação de quem observa.
O trabalho de Jacinto, com o seu conhecido aspeto experimental, traduz-se, nesta exposição, num jogo de observação, movimento e sobreposições. A artista, que procura fugir daquelas que são as suas zonas de conforto, as “inimigas discretas e fatais de um processo criativo corajoso e surpreendente”[1], guia-nos numa viagem de atravessamento, de arrastamento de tempo, convidando-nos a mergulhar numa experiência que nos relembra a vulnerabilidade que partilhamos. Relembra-nos como a maleabilidade e transparência, características dos materiais utilizados (membrana de borracha, linha, tecidos), não são atributos de fragilidade e fraqueza, mas, sim, componentes de corpos que se estendem e se complementam, atribuindo uma qualidade espacial própria à exposição. Aqui, a produção da base e da cor resultam num só corpo, numa só obra, são um só suporte.
Véus ondulantes que transformam e absorvem os elementos do espaço (Em Todo Lado / Em lado nenhum), borracha pigmentada com incorporação de leds (Desconhecidos) e desenhos com corpo físico próprio (Trabalho do espaço), fazem cair por terra as fronteiras limitativas que procuram separar pintura, escultura e instalação. Há uma “sensualidade atmosférica e táctil”[2], um ambiente com força mística resultante da mancha, da luz e da translucidez.
A artista incorpora – ou melhor, aceita – o pressentimento e a intuição no desenvolvimento do seu trabalho, “o que não se sabe, o que não se espera, o que não se entende bem tem de entrar no processo criativo ou as coisas não acontecem”[3], ficando, desta forma, susceptível a surpresas e contradições. Em Shining Indifference, essa liberdade e intuição resultam num diálogo dinâmico, flexível, num jogo de evidência e turvamento através de objetos físicos que são causas-de-sensações, que nos fazem mover. Assistimos a uma espécie de materialização de elementos que são desconhecidos, ao corpo que Luísa Jacinto atribui a uma matéria que está entre nós mas que não se vê. Uma matéria que nos atravessa, “mais espessa que o ar” – acrescenta a artista -, em que a mancha de cor é veículo mas também obstáculo. Peças que se atravessam e sobrepõem, compõem um labirinto de planos e corpos que “fazem aquilo que pinturas na parede não fazem”[4].
A suspensão e o desdobrar de cores e sombras, sugerem-nos obras-portais. A ideia de portal, de passagem, é intensificada pelo movimento de quem vê, como se o trabalho só se cumprisse com o deambular do observador nesta atmosfera de névoa colorida. Shining Indifference é o questionamento das noções convencionais de pintura, um convite à reflexão da natureza mutável da arte e da realidade, através de obras que condicionam, conduzem e nos envolvem.
No MAAT Gallery, Nicolas Floc’h, tal como Luísa Jacinto, expande possibilidades e apresenta-nos uma narrativa praticamente desconhecida, liberta do antropocentrismo fotográfico. O consagrado fotógrafo francês, que tem o mar como tema central na sua produção artística, expõe agora, pela primeira vez, em Portugal.
Mar Aberto não é uma exposição meramente didática, esclarece-nos desde logo João Pinharanda. Floc’h traz à tona uma maior consciência do mundo que nos rodeia, das realidades subaquáticas pouco conhecidas do nosso planeta, e, inevitavelmente, através da captura crua e poética, uma sensibilização para a poluição e destruição dos mares.
Trata-se de uma extensa mostra de fotografias, vídeos e peças escultóricas que retratam Bretanha, Mississipi, Espanha, Japão, Açores e o Rio Tejo de uma forma que nos é desconhecida. Uma exposição que é testemunho da amplitude do trabalho de investigação de Floc’h, mas também testemunho e registo de paisagens que estão em rápida transformação.
Conhecido pelo seu questionamento relativamente a transição, fluxo, desaparecimento e regeneração, propõe, neste conjunto de fotografias, com uma dimensão enigmática e rigor técnico quase obsessivo, novos imaginários artísticos. Regista diferentes tipologias de paisagens que nos fazem mergulhar numa atmosfera de sonho, algures entre a memória e uma hipótese de futuro. Fotografias em espaço aberto, que captam verdadeiras florestas subaquáticas, sugerem-nos um mundo distante, de gigantes, dando-nos uma verdadeira percepção do tamanho real, avassalador, do universo que se mantém desconhecido para a maioria.
O fotógrafo, que nos conduziu numa visita à exposição, começa por nos apresentar um conjunto de esculturas que são, na verdade, a representação, numa escala de 1:10, de diferentes estruturas de recifes artificiais. Construídos por engenheiros para serem imergidos no mar, têm como função restaurar ecossistemas. O fotógrafo começou por documentar estes objetos funcionais, interessado na ideia de que poderiam ser esculturas, criadas e pensadas por artistas, que “poderiam fazer parte da história da escultura, mas que fazem parte da história do nosso planeta”. Este registo é também aquele de um momento fugaz, de um tempo que acaba, uma vez que, quando imersas, o ambiente e a vida subaquática lhes altera a forma e aspeto.
É impossível não destacar também neste texto o grande mural-vitral A Cor da Água – Rio Tejo. Composto por 340 fotografias do troço entre Castanheira do Ribatejo e Bugio, compacta a distância de 95 km. Mergulhos em 34 pontos diferentes que resultam numa impactante escala de cores, em que cada uma representa um tempo e um espaço. Uma espécie de corte, de fatia de água que é alterada pela mudança de concentração e luz, revelando uma assinatura própria.
Gradualmente, o artista foi percebendo que a “‘paisagem de cor’ contava a história do mundo, a interação do ser vivo com o mundo mineral, a história da Terra, o oceano, a atmosfera, o gelo, e tudo isso em temporalidades múltiplas. Os fluxos e os ciclos hidrológicos, biológicos e geológicos perceptíveis nessas fotografias promovem o encontro da pintura abstrata com a representação fotográfica da paisagem”.[5]
Mais do que produção fotográfica documental, Mar Aberto é o retrato de paisagens marítimas desprovidas de exotismo, de antropocentrismo – é sobre a história do nosso planeta e a importância dos nossos mares.
Shining Indifference pode ser visitada no MAAT Central – Cinzeiro 8, até dia 2 de setembro de 2024; Mar Aberto, no MAAT Gallery – Galeria 2, até dia 26 de agosto.
[1] A artista em entrevista à ARTECAPITAL, disponível em <https://www.artecapital.net/entrevista-241-luisa-jacinto>.
[2] João Pinharanda em “Cena Aberta”, folha de sala da exposição.
[3] Entrevista dada pela artista à Umbigo em 2022, disponível em <https://umbigomagazine.com/pt/blog/2022/06/27/23866/>.
[4] Luísa Jacinto acerca da exposição.
[5] Nicolas Floc’h sobre A Cor da Água – Rio Tejo.