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Walk&Talk 2011-2022: o que não sabes merece ser descoberto – Entrevista a Jesse James e Miguel Mesquita

“O sentido esconde-se dentro da linguagem dos sonhos da mesma forma que uma figura dentro de um desenho misterioso. Inclusivamente, é possível que nessa direcção se encontre a origem dos desenhos misteriosos: como um estenograma onírico.”[1]

Os sonhos, muitas vezes, reverberam em ondas que se prolongam, como pedras atiradas ao lago. Procuramos sentidos entre os estímulos que nos relembram as cenas difusas projetadas na mente durante a noite anterior. Uma coisa leva à outra. Investigar estes reflexos da imaginação é uma forma de expandir a percepção sobre as emoções, descobrir coisas que não sabíamos sobre nós mesmos, aprimorar a consciência da nossa relação com o mundo. Sonhos também são desejos se manifestando.

Ao folhear as primeiras páginas do recém-lançado Walk&Talk 2011-2022: o que não sabes merece ser descoberto, a sensação de ouvir o barulho das ondas nas pedras do arquipélago dos Açores assinala de início o aspeto sensorial do projeto. Com edição de Miguel Mesquita e design de vivóeusébio, o catálogo celebra os 12 anos de Walk&Talk e encerra o seu ciclo enquanto Festival de Artes dos Açores. O projeto editorial conta com 982 imagens e 10 textos, e é estruturado em torno de conceitos-chave que envolvem a definição e orientação do Walk&Talk, delineando a essência do festival em cinco capítulos: Território, Centralidades Periféricas, Comunidade e Comunalidade, Rede de Afetos e Espaço de Falha.

Podem nos contar um pouco sobre o processo de construção do catálogo? Como foi traduzir a história do festival neste objeto-livro?

Miguel Mesquita – Desde o início, a grande ambição e a grande dificuldade para mim era conseguir converter tantas coisas, sensações e emoções em páginas. É um desafio porque, no fundo, tens a consciência da quantidade inacreditável de trabalhos, expressões e participações que o festival conseguiu abarcar e, acima de tudo, toda a vivência, experiência e construção conjunta que tínhamos de conseguir materializar. O processo passou por revisitar e reaprender muitos dos projetos, compreender como ancorá-los em alguns dos temas e expandi-los além disso, propondo uma lógica de relações onde fosse possível perceber que cada um destes projetos na realidade existe de forma autónoma, mas existem desta forma porque existem na dinâmica e na energia que é o festival. A ideia era passar esta energia para dentro do catálogo, fazer as pessoas sentirem-se dentro do Walk&Talk, voltarem ao festival e reviverem momentos a partir das imagens; que não fosse apenas uma catalogação dos projetos, mas também uma memória.

Jesse James – Houve um minucioso trabalho de organização das imagens feito pelo Miguel. Este atlas que ele criou surge a partir dessas cinco ideias (cinco capítulos); como não é cronológico, as associações também vêm de um lugar de imaginação, não só cromáticas e formais. Muitas são de projetos e relações bastante amplas, o que contribui muito para a forma como viajamos pela história do festival. Alguém disse que parece que estás a sonhar, ou num momento de vigília, que se começa a pensar numa coisa e de repente se vai para outra, às vezes coisas que não têm nada a ver. Ailton Krenak fala muito sobre o poder da associação e como ela pode ser uma forma também de reparar o mundo, porque cria espaços de composição. Isso para mim é algo muito significativo no catálogo: as pessoas trazem as suas próprias associações. À sua maneira, o Miguel continuou este espaço de imaginação e fantasia que o festival toma sempre, não sei se conscientemente, mas que de alguma forma o procura.

M.M – A partir do catálogo, consegue-se perceber um conjunto de dinâmicas inerentes ao festival e que, até certo ponto, eram difíceis de registar. Há muitas coisas construídas intuitivamente, mas que também foram feitas intencionalmente para criar situações que levem as pessoas ao índice, onde há explicações dos projetos, e assim percebam a relação entre eles. O catálogo foi pensado para ter vários níveis de leitura, cada um dos capítulos se desenvolve com uma identidade própria e era fundamental trazer o aspeto literário para dentro do livro através das imagens. Por isso, também foi muito interessante convidar o Gustavo Ciríaco para fazer o ensaio ISTMO, permitindo que muitas das noções pudessem ser expandidas e manipuladas por aquela ferramenta. Assim, entra-se ainda mais num formato onírico, alterando aquilo que são as relações estabelecidas ao pensar e experimentar outras. Convida, também, as pessoas a uma leitura e uma ação participativa, porque não são apenas confrontadas com um objeto que já está fechado. O festival é este constante espaço de reflexão, reposicionamento e construção conjunta e precisávamos de representar isso no catálogo.

Das tantas transformações e reverberações promovidas pelo festival, existe hoje uma cena artística muito viva nos Açores. Observamos, por exemplo, o surgimento de coletivos como Atelineiras e CARALAVADA, este último responsável pela curadoria da exposição Do tempo e das nuvens de Isabel Medeiros, que aconteceu recentemente no Museu Carlos Machado. Artistas açorianos que passam pelo festival seguem desenvolvendo os seus projetos e iniciativas, fortalecendo as suas próprias relações, ao mesmo tempo em que permanece o apoio da Anda&Fala. Como percebem a influência do Walk&Talk na geração atual de artistas do arquipélago?

J.J – O festival instituiu uma outra forma de fazer e pensar a arte na região. Vimos essa mudança acontecer. Acho que a grande diferença é o interesse no fazer coletivo. Desde o início, houve a necessidade de estarmos juntos, até pela falta de recursos que havia. A geração que vem a seguir a nós – muitos eram nossos voluntários, trabalhavam no Walk&Talk, no Tremor, na Imprópria e numa série de projetos que foram surgindo – se habituou a trabalhar assim, para eles esta era a única forma de concretizar os projetos, o que os tornava também mais pertinentes, principalmente numa região onde há falta de financiamentos, de entendimento político sobre a necessidade e importância destas redes e destas formas de trabalho. Sinto que discutem muito mais o trabalho uns dos outros do que a geração antes de nós e, ao mesmo tempo, incentivam e questionam o trabalho uns dos outros de várias perspetivas, sejam de caráter mais formal, conceptual ou processual.

M.M – É fundamental esta a vontade de catalisar, mas também a consciência de que há uma responsabilidade adquirida e uma ação ativa na participação pública e engajamento com a sociedade civil. Esta preocupação do festival é mesmo genuína e é sentida por estas novas gerações, como observamos no texto Afetos como Coletividade | Coletividade como Futuro de António Neves Silva. Sente-se a consciência dos que participam na conversa que origina o texto sobre o apoio incondicional por parte de uma entidade e um conjunto de pessoas, que participa construtivamente no processo deles, que propõe este espaço de experimentar e que os apoia neste crescimento. Isto passa por um lugar de muita generosidade com a criação de novas estruturas e tem a ver também com a consciência não só de equacionar outros projetos a crescerem, mas de cuidar daqueles que já existem, das associações que já existem. Isso é fundamental para um sistema saudável de relações.

Sobre o futuro, sabemos que o festival assumirá o formato Bienal, que terá lugar em junho e julho de 2025. O que esperar deste novo momento do Walk&Talk?

J.J – Estamos a trabalhar na Bienal há um ano, enquanto estávamos também a trabalhar no catálogo, o que foi muito útil para pensarmos o Walk&Talk no seu novo formato, imaginar o que ela será, o que é importante preservar neste segundo trecho da caminhada e o que renovamos dos primeiros 12 anos. Uma das coisas é a deriva, este lugar do sonho, que foi muito importante no início do festival, muito associado à idade que tínhamos naquele momento. Mas é importante perceber como mantemos isso vivo, e estamos a entender que é através de uma relação e de uma presença intergeracional na Bienal, na estrutura que vai pensá-la e organizá-la, uma vez que este lugar do sonho e do devaneio vem também dos encontros e dos momentos em que uma pessoa está na vida. Este passo foi muito importante para nós, para entender todo esse atirar de pedras e quais movimentos ele foi gerando – em nós, mas também nos outros e nas estruturas que estão à nossa volta. Agora sentimos efetivamente uma ação consciente. Podíamos não ter as palavras, nomes ou conceitos para ela lá atrás, mas já havia muitas coisas que nos estavam a dirigir. Hoje temos ideias, autores e perspetivas que nos ajudam a fundamentar esta ação e partir de uma outra posição: há responsabilidade e expetativa naquilo que apresentamos. Acho que a Bienal e este segundo momento do Walk&Talk serão ainda mais focados em pensar a partir do lugar, e como localizar isto para o mundo. Entendidos enquanto uma instituição, podemos propor um caminho de olhar para o que é esta entidade. A Anda&Fala existe em cooperação, em relação com o todo, ela é uma parte deste ecossistema, deste bioma, e só será mais forte, resiliente, resistente e pertinente quando o ecossistema à sua volta também o for.

 

[1] Benjamin, Walter. (2020). Sonhos. Sr. Teste.

Ana Grebler (Belo Horizonte - Brasil) é artista, curadora e escritora. Graduada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG - Escola Guignard) e pós-graduada em Curadoria de Arte na Universidade Nova de Lisboa (FCSH). Participou de exposições coletivas no Brasil e organizou as exposições Canil (2024), Deslize (2023) e O horizonte é o meio (2022), em Lisboa. Colabora com a Umbigo Magazine com ensaios, críticas e entrevistas, e atua nas parcerias internacionais da plataforma. Na intersecção de práticas, reflete sobre a cultura visual contemporânea criando diálogos e imaginários entre espaços e processos artísticos em cruzamento. Atualmente vive e trabalha em Lisboa.

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