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Explicit Instructions for Implicit Lives — Joanna Piotrowska na Galeria Madragoa

Se há arte sem memória, não me lembro dela. Não obstante, há determinados veículos estéticos memoriais mais evidentes que outros. São eles as artes mecânicas —pelas palavras de Rancière[1] —, o cinema e a fotografia. Ainda assim, ao contrário do cinema com a sua particularidade narrativa, “a fotografia é parcial, alusiva, fragmentária e por isso mesmo é o medium visual por excelência da memória”[2]. A memória, por sua vez, para além de integrar essas mesmas qualidades inerentes à fotografia, é também ficcional e transitória —importa referir que a imagem fotográfica também o pode ser, embora de forma alheia à sua essência.

Joanna Piotrowska transporta estas propriedades conceptuais da fotografia — e simultaneamente da memória — para a sua esfera formal. Essa circunstância é evidente imediatamente após a entrada no espaço da galeria. Um conjunto de fotografias a preto e branco faz-se notar entre as paredes brancas e iluminadas do espaço expositivo, ao remeterem-nos para um passado onde a cor não fazia parte da experiência estética da fotografia familiar. Apesar da artista ter convivido com a possibilidade da fotografia a cor ao largo da sua infância e juventude, compreende-se de imediato que a escolha em manter o preto e branco não é estética — exatamente devido à carga memorial dos restantes elementos —, mas evocativa de outro tempo passado, seja ele qual for, sem pretensão de estabelecer um rasto de veracidade temporal, relembrando-nos da ficção e alusão à qual a memória é associada.

Sem demora, deparamos-nos com uma invulgar composição fotográfica transversal a todas as obras constituintes da exposição, profundamente marcadas por sobreposições e colagens. Sobre um leve tecido, disposto como uma cortina, foram impressas, em justaposição, uma sequência de imagens de um mesmo momento evidenciando um movimento desfocado. Como se por trás daquela cortina do tempo, obliterada pela memória, estivesse claro aquilo que permanece turvo no acto de recordação. Posteriormente, seguem-se algumas fotografias onde se reconhece um processo de colagem. Sobre gestos de afeto surgem bocas e sorrisos — recortes de rostos que se conservam na memória de forma nítida, por entre o excedente de imagens frívolas e embaciadas que compõem o restante da nossa memória. De modo que, mais uma vez, Joanna Piotrowska joga com as idiossincrasias inerentes à memória (e à fotografia), desta vez através do seu poder fragmentário, parcial e, consequentemente, seletivo.

Há, de facto, um núcleo de afetos que abraça o conjunto da exposição: entre rostos e mãos materializam-se gestos de ternura, cumplicidade e proximidade que nos projectam tanto para a centralidade do toque no domínio da memória — que sobrevive tanto de gestos imaginados (no sentido de representar e criar imagens), como encorporados[3] — como para a centralidade do gesto como elemento vital e fundamental do dispositivo fotográfico. Da mesma forma, a intimidade retratada (ou reproduzida) nestas fotografias envia-nos de volta para um ambiente familiar, íntimo e doméstico, onde nos revemos nas presenças e ausências dos corpos que as ocupam. Há um sentimento de pertença, da mesma maneira que há um sentimento de perda — como nos sugere a silhueta que foi recortada de uma das fotografias, permanecendo apenas as mãos da mesma, sublinhando de novo o poder do gesto e do toque gerado por elas na memória, na fotografia e nos afetos.

Resta referir a incontornável peculiaridade dos suportes, que não passam despercebidos, muito pelo contrário — por vezes tomam tamanha proporção de modo que esgotam a sua funcionalidade e tornam-se tão centrais na constituição da obra quanto a própria fotografia que suportam. A maioria das fotografias encontram-se enquadradas entre tábuas que reproduzem o padrão dos chãos de soalho característicos das casas de uma geração. Isto é, os suportes também são responsáveis pela carga memorial que paira no ambiente envolvente. Na última parede da galeria, outro pano suporta dois pequenos sorrisos recortados e colados sobre as extremidades mesmo, aproximados por uma série de rabiscos série de rabiscos ocupam o restante do suporte que cessa de constituir-se como tal. Estes rabiscos, diz-nos Sara de Chiara na densa folha de sala, foram curados e trasladados para a tapeçaria pela artista, entre uma seleção de desenhos de infância elaborados pela própria, pela irmã e pelos primos. Entre a inocência do sorriso e dos rabiscos, a artista devolve-nos um olhar memorial sobre e através da infância. Memória essa que costuma ser tão errática quanto os próprios rabiscos que compõem a obra. Por último, Joanna Piotrowska não se olvidou dos inconfundíveis tecidos florais que teciam toalhas de mesa, cortinas ou, por ventura vestidos, noutro tempo sincrónico da sua infância e juventude, e trá-los para uma das molduras — como quem não se esquece de nada!

Em modo de conclusão, importa mencionar que estas não são imagens de arquivo, são fotografias atuais. A carga memorial é lhes incutida e construída sobre o possível, no presente, de modo a suscitar memórias implícitas. Não obstante, como bem nos esclarece Rancière: “o real para ser verdadeiramente compreendido e pensado, deve ser ficcionado”[4].

Implicit Lives, de Joanna Piotrowska está patente na Galeria Madragoa até 6 de Julho de 2024.

 

Nota: A autora não escreve ao abrigo do AO90.

 

[1] Rancière, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2009 (2ª Edição).
[2] Sturken, Marita. “Memory, Consumerism and Media”. MEMORY STUDIES. London: Sage Publications. Vol 1 (1): 2008, p. 73.
[3] Em concordância com Eduardo Viveiros de Castro, traduzo o verbo inglês ‘to embody’ e os seus derivados pelo neologismo ‘encorporar’, sendo que nem ‘encarnar’ nem ‘incorporar’ são realmente adequados. Cf. Viveiros de Castro, E. (2002). A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.
[4] Rancière, Jacques. A partilha do sensível. Estética e Política. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 58.

Benedita Salema Roby (n. 1997). Investigadora e Escritora. Doutoranda em Estudos Artísticos: Arte e Mediações, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Mestre em Estética e Estudos Artísticos e Licenciada em História da Arte, pela mesma instituição. Neste momento encontra-se a realizar uma investigação acerca da correlação entre o graffiti (escrita criativa transgressiva) e a construção da esfera contra-pública e proletária, na cidade de Lisboa. Tem colaborado em projetos independentes com fotógrafos e writers, como é o caso do recente foto-livro da artista Ana Moraes aka. Unemployed Artist, Lisboa e Reação: Pixação não É Tag.

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