Top

Canhoto As Zurdo, no Kindred Spirit Projects

Muito nos ensinou a arte sobre o espaço, o desenho e as imagens que guardamos dos lugares que habitamos. Muito nos ensinou também sobre a perceção do mundo, das formas e da experiência, mais ou menos solitária, mais ou menos comunal, dos objetos. A representação da vida no espaço. A representação do corpo no espaço. Mesmo quando se encontram ausentes. Pois que a arte é esse fenómeno estranhíssimo, que aceita toda e qualquer espécie de contradição ou oxímoro, que inquieta, que deixa em tensão e, por outro lado, que conforta os que contemplam o vazio.

Uma linha no espaço é uma linha no corpo. Um risco no espaço é um gesto do corpo: órgãos que vibram, se agitam – agentes-limite da memória, da identidade e das construções sociais. Há sempre mais um lado, nesse poliedro infinito que é a arte: um ângulo diferente, uma perspetiva obtusa, um olhar esquerdo sobre a realidade, que se nos afigura novo, inaudito, revelador e, por vezes, encantatório.

Em Canhoto As Zurdo, Nuno Sousa Vieira e Tamara Arroyo ensaiam um espaço que, para além destas várias dimensões, se mostra um mediador de tensões entre interior e exterior, público e privado. E na performatividade a que obrigam os visitantes, num deambular livre, lento e aproximado, descobre-se a íntima relação entre as microperceções e o desenho. É uma paisagem difusa, uma ideia em devir, uma construção imaginada, sonhada, improvisada. É uma memória pessoal e, simultaneamente, uma investigação antropológica e sociológica – isso a que Bachelard chamaria de imagem poética, suspensa nos versos por dizer, nas palavras por escrever, nos sentidos por descobrir, interminavelmente, redobradamente, infinitamente.

Ambos têm esse jeito de perscrutar a vida no mundo. Canhotos – Zurdos, em espanhol –, a sua relação com o quotidiano faz-se com esse desvio em relação à norma, com uma adaptação crítica às pequenas coisas, e, por vezes, uma resistência e objeção inconformável no que respeita à máquina ciclópica que faz os vários fluxos e fenómenos humanos girar e pulsar. A mão coordena um trejeito, que coordena o corpo, que coordena os estados cognitivos e afetivos. Os acontecimentos são sempre vistos de outro prisma, sob outra lente – essa eventualmente subversiva. Esconsos, diria Sousa Vieira, numa inclinação obtusa ou aguda de um plano rasgado e projetado no espaço.

O pano de vidro de uma janela parte-se. Não é destroço nem ruína. É o desenho do acaso que evidencia fraturas e regista uma série de linhas e fragmentos. A arte encarrega-se de juntar a fragmentação súbita, desvelando a imprevisibilidade, a queda, a morte e a reconstrução. Desses vidros já não temos exterior e interior. Temos qualquer outra coisa, qualquer outra realidade ou espaço – um que será do artista ou da arte, que nos abre para a abstração das formas, das cores e dos estilhaços. Sem a transparência, a paisagem que vemos destas janelas é uma composição de cores opacas, a paisagem possível para o interior ou o exterior da mente do artista. O artista troca a libido voyeurista humana pela libido artística. Não espreitamos ninguém. Espreitamos a forma da cor, do desenho, da dissolução e da arqueologia pós-industrial.

Em Nuno Sousa Vieira, a janela é um elemento de passagem entre duas dimensões incertas, mas é também um objeto cujos signos e significados podem ser expostos à lei da plasticidade, dobrando, quebrando, desconstruindo e reparando. É no detalhe que a construção de Procuramo-nos (2024) brilha. Na minúcia de cunhas, acrescentos, peças buriladas e esculpidas usadas susterem a peça num equilíbrio limite. É uma peça que deve tanto à escultura quanto ao desenho, como, de igual modo, Visão Embaçada (série 3) (2024) deve tanto ao desenho como à pintura.

Uma sola serve de calço e recorda toda uma memória de um espaço em que o artista trabalhou e cresceu, a fábrica da SIMALA. A utilidade da memória é tão evanescente quanto perene, tão espectral quanto material. Uma tara nunca é perdida. Um defeito nunca é desfeito na circularidade da arte.

Se em Sousa Vieira o desenho se manifesta numa espacialidade vagamente arquitetónica, em Tamara Arroyo é o fenómeno urbano que se revela. As cercas, o lixo, as janelas vistas de fora, a materialidade do ferro, da cerâmica e dos objetos que remetem para o plástico ou o poliestireno ocupam o recinto numa espécie de Antropologia Urbana. Mas há um lado irónico e um espírito lúdico ou subversivo que inutiliza a cerca como delimitador de espaços públicos ou privados. A cerca ganha um espírito recombinatório, o seu desenho liberta-se da sua função para existir como estrutura e registo gráfico no espaço.

O saco de plástico que perde a leveza flutuante e esvoaçante para ganhar uma fixidez e uma massa que quebra com a gravidade. Não é plástico, é cerâmica, mas parece vivo e animado pelo vento. É o empecilho de uma ocupação humana, bem como as caixas de comida ou um pedaço de lona azul. O lixo ganha um outro estatuto, vira presença naturalizada.

Há qualquer coisa de escatológico que Arroyo parece querer transmitir nesta visão do espaço urbano. Algo que se faz de seres humanos, mais os respetivos detritos e despojos; de uma propriedade cercada que é manifesto de qualquer coisa anal, freudiana e primária. A posse, bem delimitada, cercada de vedações em ferro, que servem involuntariamente de peneira para a sujeira. Arroyo parece romper com tudo isso, sem que o deixe de expor.

Contudo, em qualquer um dos casos, é o fenómeno da perceção e da perceção da arte que estimula o observador, num jogo de aproximações e afastamentos, deambulações peripatéticas e lugares de estada. De facto, já não se fala de espaço. Fala-se antes de lugar, pleno de identidades que entram em diálogo e convivem idiossincraticamente talvez não como amigos, talvez não como parceiros ou colegas, mas como uma boa vizinhança.

Canhoto As Zurdo, de Nuno Sousa Vieira e Tamara Arroyo, pode ser visitado no Kindred Spirit Projects, com a curadoria de Sérgio Fazenda Rodrigues e Virginia Torrente, até 18 de julho. Trata-se de uma exposição desenvolvida no âmbito do programa Hosts, que serve de acolhimento pontual de criadores ou projetos, dentro de um regime de convites endereçados especificamente a artistas dos vários campos disciplinares da arte.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)