Aprender a Desaprender é o tema da 11.ª edição do Arquiteturas Film Festival
No dia 27 de junho, arranca mais uma edição do Arquiteturas Film Festival. Filmes, debates, instalações e passeios terão lugar em vários sítios da cidade do Porto. Bêka & Lemoine são os realizadores convidados e o programa oficial conta com a curadoria do estúdio LOCUMENT. Conversámos com Paulo Moreira, diretor do festival, acerca deste encontro entre cinema e arquitetura que nos convida a “Aprender a Desaprender”.
Arquitetura e Cinema são duas disciplinas cuja relação é indissociável. A pertinência do Arquiteturas Film Festival é indiscutível. O festival conta já com 11 edições. O que traz de novo esta edição de 2024?
O festival tem sido adaptado em cada ano, dependendo das circunstâncias, das parcerias, das curadorias, etc. Partimos sempre de um convite a uma instituição ou um grupo ligado à cultura ou investigação arquitetónicas. Depois de 8 edições em Lisboa, onde a estrutura incluía um “país convidado”, passámos o festival para o Porto e introduzimos uma mudança nesse formato. Nos dois primeiros anos no Porto, em 2022 e 2023, convidámos instituições que usam o filme como ferramenta curatorial e de investigação: o CDA – Centre for Documentary Architecture e o CCA – Canadian Centre for Architecture. Este ano, convidámos os Bêka & Lemoine, um coletivo de realizadores de filmes de arquitetura que já têm vindo a participar no nosso festival, ao longo dos anos. Pensámos em dar-lhes mais espaço para apresentar não só os filmes mais recentes que têm feito, no Batalha Centro de Cinema; mas também uma instalação com vários filmes produzidos para o contexto de exposições, acolhida no nosso espaço cultural, o Instituto; um debate partilhando alguns aspetos da sua prática, moderado pela Mariana Pestana e tendo lugar na Circo de Ideias; e um passeio conduzido pelo arquiteto Pedro Bandeira, que procura relacionar o olhar dos Beka & Lemoine com o contexto da cidade do Porto.
O programa do festival revela que “a arquitetura nem sempre considera questões prementes como a justiça social, a crise ecológica e a descolonização”. De que forma os filmes de Bêka & Lemoine abordam estas questões prementes?
O filme que abre o Festival, Rehab (from rehab) (2023), mostra um hospital projetado pelos arquitetos suíços Herzog & de Meuron em Basileia, em que os protagonistas são as pessoas que ali estão a fazer reabilitação física, contando-nos as suas histórias, ao mesmo tempo que o dia-a-dia do edifício, em pleno funcionamento, vai sendo revelado… Esta é uma forma de perceber a arquitetura sem ser explicada pelos arquitetos; aliás, os arquitetos nem sequer aparecem no filme…
Em Tokyo Ride (2020), aparece Ryue Nishizawa em trânsito por Tóquio, mostrando-nos a sua relação com a cidade – incluindo edifícios de referência e inspirações, não necessariamente os seus próprios projetos. Em The Sense of Tuning (2024), Bijoy Jain visita estaleiros e tem reuniões durante a filmagem, em Mumbai. Ficamos a perceber um pouco sobre a rotina do arquiteto, não o resultado final das suas obras, que é aquilo que é habitualmente apresentado nas publicações e nas exposições…
Estes filmes fixam momentos relativamente curtos, por vezes filmados no mesmo dia… não servem propriamente para “explicar” um projeto ou um percurso profissional, têm uma abordagem muito natural e até espontânea, o que é diferenciadora em relação às convenções de representação da arquitetura contemporânea.
O programa encontra-se organizado segundo vários eixos, sendo que o programa oficial conta com curadoria de LOCUMENT. A sua prática conjuga o cinema com a arquitetura e a investigação urbana. Que abordagem trouxeram para o festival?
Achámos igualmente importante ter um festival com participantes de alcance global e local. Por isso convidámos os LOCUMENT, sediados no Porto e com diversas colaborações internacionais, para fazerem a curadoria do Programa Oficial. O seu olhar traz novas perspetivas sobre a relação entre a arquitetura e os recursos naturais e geológicos. Selecionaram filmes que olham para os efeitos que as acções sócio-políticas exercem sobre o território – por exemplo, através da extração de matérias primas, ou da construção de infraestruturas de grande escala. Filmes como Burial (2022) de Emilija Skarnulytė, sobre uma Central Nuclear na Lituânia atualmente em processo de desativação, ou Taming the Garden (2021) de Salomé Jashi, sobre um processo de replantação de árvores centenárias na Geórgia, motivam-nos a repensar a forma intrusiva e perigosa como interagimos com os recursos finitos do planeta.
Para esta edição há, ainda, um novo eixo do programa a que designaram como Programa Experimental. Em que consiste?
Já tínhamos tido a secção “Experimental” em 2022, e regressa este ano. A ideia de criar esta secção parte da vontade de apresentar filmes que não se encaixem em formatos habituais em cinema, como “ficção”, ou “documentário”. Este ano, juntámos os participantes de língua portuguesa que integraram a exposição oficial da Bienal de Arquitetura de Veneza 2023, tais como os Cartografia Negra, do Brasil, a Margarida Waco, nascida em Cabinda, e os Banga Colectivo, únicos participantes sediados em Portugal. Temos também os dois filmes encomendados para o pavilhão do Brasil, vencedor do Leão de Ouro para melhor participação nacional na Bienal. Achámos importante trazer ao público de Portugal estes projetos da Bienal de Veneza, que teve como tema “Laboratório do Futuro”. Haverá um debate denominado “Regresso ao Futuro”, precisamente para compreender o impacto que a participação na Bienal teve em alguns dos intervenientes.
Porquê o tema “Aprender a Desaprender”?
Aprender a Desaprender parte da pesquisa que fazemos para cada edição, que passa por ver filmes, ler livros, etc. No verão de 2023, no final da última edição do Arquiteturas Film Festival, tinha sido publicado o livro dos Bêka & Lemoine, The Emotional Power of Space (2023), que contém entrevistas a vários arquitetos de renome. Interessou-me nesse livro um tema que é recorrente nas várias entrevistas – a maioria dos testemunhos refere como as suas práticas são contrárias àquilo que aprenderam durante a sua formação. A ideia de “desaprender” (“unlearning”) é referida explicitamente por Bijoy Jain, que diz que dá aulas como forma de desaprender ele próprio o que sabe. Houve ainda um momento em que assisti ao filme Rehab dos Bêka & Lemoine, onde há uma cena filmada ao contrário, ou seja, o edifício aparece de pernas para o ar, e isso fez-me pensar que desaprender passa por olhar “ao contrário” daquilo a que estamos habituados
Foi também recentemente publicado um livro cujo título é semelhante ao do festival, “Aprender a Desaprender”. Um complementa o outro?
Editei um livro com o mesmo título, fruto de uma parceria entre o Instituto e a Dafne. Todo o processo do livro decorreu em paralelo às pesquisas que fomos desenvolvendo para esta edição do festival. O livro acaba por ser um instrumento importante como complemento ao festival, estão interligados. São conversas que trazem para o campo da arquitetura temas como o repensar pedagogias e formas de trabalhar, sob a forma de diálogos. O livro complementa o festival, com mais leituras. Reciprocamente, o festival serve de complemento ao livro, até porque vários dos autores exibem filmes… Foi um desafio grande, mas interessa-me criar estas ramificações que perduram no tempo, em vez de pensar o festival como um programa “encerrado” e cingido a um calendário específico com sessões definidas
Referiste três dos eixos que organizam o programa do festival, restando o Programa Especial Portugal. De que se trata este último eixo e como se articula com os outros?
Mesmo com a mudança para o Porto, interessa-nos manter e reforçar a dimensão nacional no Arquiteturas Film Festival. Pensando sobre isso, convidámos o Cinalfama, festival que decorre em Lisboa no verão, para fazer uma sessão com filmes que se relacionam com o tema do nosso festival. Há também na sessão focada no Porto, com a projeção do filme Habitar (2024), do Joaquin Mora, que reúne testemunhos de pessoas que habitam na cidade. Também aqui, através de testemunhos das pessoas e da relação que estabelecem com o espaço doméstico, acabamos por refletir sobre questões da arquitetura e da apropriação dos espaços, bem como sobre a crise da habitação, os efeitos do turismo e a gentrificação…
Na sessão de encerramento, há a projeção de um filme sobre o Brasil. Qual?
Para a sessão de encerramento, convidámos a realizadora Denise Zmekhol, que mostrará Pele de Vidro (2023), um filme sobre a maior ocupação de edifício a ocorrer em São Paulo, numa torre de escritórios de 24 pisos. Pareceu-nos um exemplo extraordinário para mostrar como um filme pode relacionar a arquitetura com temas prementes da sociedade. O pai da realizadora, Roger Zmekhol, foi um arquiteto modernista de São Paulo, que deixou muitas obras importantes na cidade, entre elas este arranha-céus. A realizadora, que vive na Califórnia, quis revisitar esta obra, porque tinha vontade de fazer um documentário sobre a obra do pai. Acabou por descobrir que o edifício estava totalmente ocupado por famílias sem-abrigo, e, portanto, o filme passa a refletir sobre as más condições de vida e a falta de acesso à habitação que existe em São Paulo e no Brasil em geral.
Acho que é uma ótima forma de encerrar o festival porque resume estas duas frentes: o lado disciplinar através de uma visita à obra de um excelente arquiteto, e ao mesmo tempo, o estado totalmente transformado de um edifício e o seu destino totalmente inesperado.
A 11.ª edição do Arquiteturas Film Festival acontece de 27 a 30 de junho. Consulta o programa completo no website do festival.