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Eu Estou Aqui de Leylâ Gediz, Luisa Cunha e Raija Malka no espaço 119 Marvila Studios

Ao entrar na galeria 119 Marvila Studios, as primeiras instalações que se descobrem, na exposição Eu Estou Aqui, são as de Leylâ Gediz, artista turca, atualmente a viver em Lisboa.

O som de uma voz, provindo de um canto discreto da galeria, também se demarca, e evidencia-se, no espaço, pela forma eloquente e veemente com que se expressa. A voz, de Luisa Cunha, foi gravada em loop, e repete as palavras: “É aqui!”[1]. A voz da artista parece orientar o foco da atenção para o próprio visitante, e o reconhecimento do lugar que ocupa. Talvez conclua: “Sim, estou aqui”. Intui-se um certo tom de espanto. A artista exclama, há interjeição, emoção na voz, porventura uma certa surpresa, e somos embalados por ela. É o nosso corpo que move.

Em 2007, Ricardo Nicolau, no catálogo da exposição individual da artista, patente no Museu de Serralves, descrevia muito bem a experiência do espetador e a consciencialização da sua presença[2]. Como dizia: “Sermos percepcionados, ganhar consciência do nosso papel enquanto observadores, da nossa presença física no espaço, é um imperativo das peças sonoras de Luísa Cunha”[3].

Na realidade, o áudio parece deter-nos, circunscrever-nos a um lugar cativo, próprio. Contudo, mais do que o espaço da galeria, o lugar que habitamos é o do pensamento. Um lugar de dúvida, de questionamento. Somos impelidos a sondar os nossos próprios gestos, as trajetórias que disferimos previamente, até, quiçá, à galeria. Ou será antes o nosso próprio ser a ser indagado?

Ricardo Nicolau[4] elucida-nos ainda sobre as relações que as peças de Luisa Cunha despertam em nós, ou nos influenciam no campo da percepção. Fala-nos de uma figura geométrica dominante que, para o autor, se encontra subjacente nos trabalhos da artista: a linha. Uma linha condutora, que pode “controlar as pessoas, angustiá-las ou transmitir-lhes os mais variados graus de conforto e de segurança”[5].

Na verdade, a “voz” de Luisa Cunha conduz-nos a uma interrogação, remete-nos para os nossos pensamentos e para a nossa própria condição, de receptores de estímulos, e ao mesmo tempo, de vidas e memórias. E isto com o mínimo possível de meios, ou, para evocar Roberta Smith, um “severo reducionismo”[6].

Cunha usa a linguagem como ferramenta, e tal como Smith descrevia algum do conceptualismo, “traz alguns aspectos da vida, em vez da arte, ao foco da mente e psique do espectador”. Porém, o trabalho de Cunha impele à reflexão. Além do que Smith denominava “Conceptualismo Social Realista”[7], que se revestia de uma total “ausência de imagens”[8] no tratamento de temas sociais, políticos e existenciais, as peças da artista não se limitam a essa condição. Muito pelo contrário, não deixam de assentar a sua estrutura no conceito e na ideia, na lógica e nos mecanismos analíticos da arte. Não só somos conduzidos a um olhar para dentro, para os demais gatilhos psicológicos que habitam o nosso ser, como, e mais importante, para uma “definição da arte”[9], sua evolução, e questionamento dos seus princípios fundadores.

O trabalho de desmaterialização na obra de Cunha estimula o receptor a um exercício de reverberação e reflexão profunda, de produção de perguntas, de qualidade científica. É a arte, e a sua condição, que é posta à discussão, acima de todas as outras coisas.

Um arco descreve-se em torno da peça áudio de Luisa Cunha. A adornar essa coroa, encontramos, exposta, a primeira instalação de Leylâ Gediz. Um tripé, disposto de modo invertido, suportado por um cilindro em madeira prensada, e depois, na base, por uma peça leve, em poliestireno expandido (o conhecido esferovite).

Um objet trouvé composto por uma pilha, ou amontoado de coisas desirmanadas, encontradas ao acaso (e guardadas no atelier), uma reminiscência de arte povera, talvez, enobrecida e recontextualizada, que a artista geralmente transpõe para a pintura.

Sobre a parede, a acompanhar a peça, encontra-se, fixada, uma pintura com a representação de quatro velas, dentro de copos de vidro transparente. Ao lado, um texto-poema escrito à mão, de título Styrofoam Dreaming (Resist).

O espaço da galeria ostenta uma longa parede alva, que pertence a uma alta mezzanine. Num canto desta parede, desenvolve-se uma longa escada helicoidal, de linhas sinuosas e elegantes. A mesma parede é, depois, sulcada por pequenos nichos, ou esconderijos, encimados por arcos de volta inteira.

Nestes pequenos recantos, lugares recônditos, guardam-se surpresas. E num deles descobrimos uma outra pintura, a preto e branco, de Leylâ Gediz: Dolls House. Nesta pintura, Leylâ surge representada, sentada sobre o chão, próxima de uma grande caixa de cartão. A curadora Isabel Carlos, na folha de sala, descreve esta pintura “como um duplo auto-retrato da artista”. Uma vez que a artista “surge dentro de uma caixa-abrigo”, virada para nós, e, em simultâneo, debruçada sobre a mesma caixa, mas de costas para o espetador.

A caixa servira, previamente, para, no sentido figurado, transportar a artista. Artista que se encontra, recentemente, a viver em Portugal, e a atravessar um período de adaptação a uma nova cultura, e a uma nova língua.

À esquerda da pintura Dolls House está uma outra instalação, sobre o chão, de objetos reutilizados, pertencentes à mesma artista: Altar. Composto por um jarro, em forma de cabeça de um buda, é contornado por um biombo em cartão canelado, deixado cru, sem qualquer tratamento ou disfarce (um material que é habitual na artista). O pequeno buda surge pousado, mais uma vez, sobre um suporte, muito frágil, em esferovite. A forma vulnerável com que o cartão canelado é deixado sobre o solo, ameaça tombar, a qualquer instante, sobre o pequeno Buda, evidenciando um sentimento de transitoriedade. Algo está prestes a acontecer, a mudar inesperadamente.

No catálogo da artista, Camada a partir do Plano de Fundo, Luísa Sol relata como Leylâ encontra semelhanças entre o Martim Moniz e algumas partes de Istambul. As suas reconstruções consecutivas, certos odores, as caixas empilhadas à frente do centro comercial. Talvez a artista transmita esses fluxos, essas transmutações, essas coreografias sociais, e urbanas, num longo e perpétuo movimento, e constante reconfiguração e deslocamento.

Entre as instalações-cenário de Leylâ Gediz, assomam as vibrantes obras de Raija Malka, artista finlandesa. Malka “gosta de trabalhar, de forma intuitiva, a cor”[10]. Interessa-lhe os “processos afectivos”[11], estimulados pelas “memórias dos lugares”[12] e evocações do passado[13].

As pinturas de Malka, Résurrection, Prologue, fazem-se acompanhar por um cuidado também cénico da artista, tal como Gediz. Pintadas densamente, camada por camada, as pinturas revelam uma cor vibrante e um tratamento de claro-escuro meticuloso, no contorno dos volumes representados, geralmente integrados em espaços arquitetónicos. Induzem, a um dado momento, a um efeito óptico[14], e em simultâneo, a um resultado cósmico, sideral, artificial. Os volumes parecem suspensos. Como um íman, somos impelidos a entrar, e percorrer o seu interior, a fazer parte desse lugar, desse espaço que mora na memória e na imaginação. Isabel Carlos torna possível essa vivência concreta do espaço, ao transportar, para o espaço da galeria, o interior do atelier de Malka. Uma mesa de estúdio encontra-se pejada de pequenas amostras de cores dóceis, com nuances subtis. Formas coloridas, num jogo de volumetrias, servem como elementos de composição, para os seus quadros.

Eu Estou Aqui, com curadora de Isabel Carlos, está patente no espaço 119 Marvila Studios até 30 de junho de 2024.

 

[1] Peça de áudio, de Luísa Cunha, de 2008.
[2] Nicolau, R. (2007). Luísa Cunha. Catálogo Museu Serralves, pp. 57-70.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] Smith, R. (1980). “Conceptual Art”. In: Stangos, N. (Ed.) (1994). World of Art Series. Thames and Hudson.
[7] Ibidem.
[8] Ibidem.
[9] Ibidem.
[10] Segundo Paulo Pires do Vale. (2014). “Gymnasion”. Catálogo de exposição. CAM. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 37, 39.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem.
[13] Ibidem.
[14] Próprio da pintura, mas potenciado pelas formas densas e tratamento de sombras. Serão telas de cinema? Pequenos ecrãs? Imaginários sci-fi?

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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