Extinção. Cristina Lamas na Brotéria
Vi, colado numa caixa de eletricidade, um cartaz da exposição descolorado, destruído, queimado do sol, onde as cores avermelhadas mais pareciam labaredas. Não sei se inspirado por esse cartaz, pela instituição anfitriã, ou por motivos mais profundos da psique, mas o título da exposição – Extinção – guiou-me de imediato para a ideia de juízo final. Talvez não seja um parecer assim tão disparatado, no entanto, longe de uma leitura religiosa – sem deixar de ser metafórica –, o título é antes uma possível sentença – já em execução – deste julgamento onde os réus, que aqui se sentam no mesmo banco que os juízes, não são por enquanto os que mais sofrem as consequências dos seus atos. A exposição parece ser, então – para continuar no jargão jurídico –, uma espécie de medida de coação.
Cristina Lamas descreve esta mostra – resultado de uma residência de três meses realizada pela artista na Amazónia Paraense[1] – como “uma chamada de atenção para o fim de línguas e de conhecimentos, de ciclos de vida e de fenómenos naturais”. A artista imputa-nos os factos puníveis que aqui nos trouxeram, através da arte, figurando um dos caminhos tomados por esta a partir do seculo XX, que se propõe a “produzir situações, a maior parte das vezes circunstanciais ou ambientais, que usam dispositivos retirados a outras dimensões da expressão humana, nomeadamente a arquitectura, o teatro, a música, ou, em termos mais metafóricos, a sociologia, a política ou a antropologia”[2]. No entanto, este torna-se um caso de cruzamento com uma outra via – algo que tão frequentemente acontece –, pois, partindo inicialmente de uma relação com o espectador por meio de processos cognitivos, esta é rapidamente ultrapassada, tanto na prática como no campo conceptual, para uma relação estética, sensível, mais próxima da lógica do desenho – mas não só –, sem que nunca esqueça, ou deixe esquecer, a sua génese.
No centro da exposição encontramos um tronco queimado; lembra um pedaço de carvão, mas não está suficientemente deformado para que se perca a referência. Está na vertical, é uma árvore e uma coluna em simultâneo. Não chega ao teto, fica a escassos centímetros. É uma coluna liberta da sua função. É meramente simbólica. É uma árvore.
A ideia genérica de árvore é um fragmento de floresta. Estes elementos vivos independentes, quando juntos, como um modulo padrão, perdem a individualidade para ganhar força. A árvore está para a floresta como as casas para as cidades e como a multiplicidade de olhares de espectadores para a exposição.
Esta arvore de carvão, símbolo do cruzamento entre as vias descritas acima, mas também da destruição, ramifica-se entre a palavra escrita, a palavra dita e a imagem, numa estrutura única, construída pela subjetividade – em contexto – de cada um. Esta desconstrução continua até ao limite da própria imagem, da própria palavra, que se fragmentam de tal forma que se tornam um eco do original. A forma liberta-se da cor, para mais à frente se tornar padrão, para quase se tornar uma linha. É quase a extinção em duplo sentido. Mas está lá o tronco, a origem, plantado no centro da sala, que não nos deixa perder-nos ou libertar-nos – daí a medida de coação – e torna a montagem da exposição uma componente vital
Como disse o curador Sérgio Fazenda Rodrigues na visita guiada: “Tudo funciona individualmente, mas tudo pode – e parece-me que deve – ser pensado como um conjunto.”[3]
A exposição Extinção, de Cristina Lamas, com curadoria de Sérgio Fazenda Rodrigues, está patente na Brotéria, em Lisboa, até ao dia 7 de julho de 2024.
[1] Este não é o seu primeiro encontro com a região. Recomenda-se a leitura do artigo “Pororoca de Cristina Lamas na Fundação Carmona e Costa”, de Joana Duarte, nesta mesma revista.
[2] Sardo, Delfim. (2011). “Natureza Artificial” . In: A Visão em Apeneia. Lisboa: Babel.
[3] Cito Sérgio Fazenda Rodrigues de memória na visita guiada da exposição.