Fernão Cruz e Rita Ferreira na Rialto6
Fernão Cruz: com cinza e bronze salgamos o corpo ausente
Para um antropólogo – talvez possamos acrescentar: e em sociologia, sendo a ciência mais próxima do estudo e do contexto das nossas ações -, o termo “alteridade” refere-se ao encontro com o “outro”. Um “outro” como o “diferente”. É sobretudo uma relação entre a individualidade do “eu” e a esfera do “outro”, ou a pluralidade dos vários “outros”. É importante sublinhar que esse encontro não é uma interação hierárquica, manifesta-se sim na horizontalidade do olhar. Reconhecendo o “outro”, legitimamos a possibilidade de coexistirem múltiplos pontos de vista. Na verdade, a existência do “ser-individual” apenas é possível quando existe esse confronto com o “outro-ser”, e se substituirmos a inicial minúscula por uma letra maiúscula – “Outro” -, falamos de sociedade, palanque de todas as nossas ações e encenações. Na mais recente exposição de Fernão Cruz na Rialto6, temos encontro marcado com Outro, que não é o artista, mas que não deixa nunca de o ser, embora ausente (ou nem tanto assim).
Começamos com Vínculo (2024), o prelúdio de uma cena doméstica. Um extintor em bronze encena uma entrada ou saída pela caixa de escadas. A peça remete para a extinção de um fogo, um fogo outrora aceso, um fogo agora apagado. Adiante, iremos perceber que este duplo sentido de fogo, chama que queima ou fogo habitacional, acompanha a visita. Entramos sala adentro e percebemos, desde logo, que Cruz manipula muito bem a sucessão de níveis que existem na Rialto6. De um lado, a “sala” exposta pelo pano de vidro voltado à Rua do Conde de Redondo; do lado oposto, o espaço servidor que abre ao logradouro, abaixo do mezanino onde repousa o quarto com uma cama. Qual peça de teatro, o artista “maquetou” uma morada com divisões para estar, deambular e dormir. Defronte da porta, por onde acabámos de entrar, está uma janela de alumínio entreaberta, estores e uma toalha. Pausa (2024), o título da peça, é uma provocação! Estamos dentro ou fora de casa? Observamos ou somos observados? Estas paredes são húmidas ou serão fachadas incendiadas? Estaremos a imiscuir-nos na intimidade do outro? Ou estamos uma vez mais dentro da cabeça de Fernão Cruz?[1] Tudo está do avesso[2].
Se na “sala” Fernão Cruz se apresenta em cinzas, com quatro telas grandes lembrando a efemeridade da vida, no centro do espaço a escultura de uma esfregona em bronze (Lavar o Entulho, 2024) reforça a persistência de uma rotina (em loop), trazendo-nos de volta. Escrevo “se apresenta”, por existir no trabalho de Cruz uma intrigante autorrepresentação, seja através de mementos biográficos, seja através do seu corpo. É o corpo que figura numa das quatro pinturas (Notícia de Existência ou Pedido ou Recusa, 2024), onde o braço de Fernão Cruz rompe, lembrando Helena Almeida numa tela habitada, e nos desafia a ler correspondência alheia.
Se recuarmos a Morder o Pó (exposição de 2021, na Fundação Calouste Gulbenkian), em particular à série de pequenas esculturas em bronze, compreenderemos melhor essa tensão entre matéria perene e delével. As esculturas (ou estatuária, um termo que, no contexto de Morder o Pó, tinha outra importância) eram em bronze, mas a textura e a aparência eram a do cartão canelado, num jogo inocente e manual sobre cartão, gesso, papel ou esferovite[3]. E se a cinza é uma alusão ao carácter temporário da vida, à sua finitude, já o bronze contrapõe a ideia de desaparecimento, perpetuando a memória.
Outro recupera também os readymades (objetos do dia a dia trazidos para o contexto artístico), um padrão no trabalho de Fernão Cruz, que o artista nomeia com jogos de palavras e expressões menos óbvias, lançando pistas sobre a interpretação. Exemplos disso são a presença de uma muleta (O Assistente, 2024), a máquina de lavar roupa com um busto no tambor (Máquina do Tempo, 2024) – por sinal o busto do seu pai -, ou a esfregona e o extintor de que já falámos. Tudo contribui para uma narrativa construída, onde o espectador mergulha.
Em palco, dançamos à toada das sinapses interrompidas e memórias cruzadas de Fernão Cruz, procurando o corpo ausente na indumentária deixada ao acaso; a trágica camisa, o corpo invisível na cama, ou o corpo póstumo e os seus restos mortais. Se Fernão Cruz nos habituou a oscilar entre a clássica Comédia e Tragédia (greco-romana), esta é talvez, de todas as exposições individuais, aquela em que procura a purificação pela catarse.
Retomando o início deste texto, Outro, de Fernão Cruz, é uma expedição por terras do Vesúvio, com todas as perguntas de um artista (atrevo-me a acrescentar ansiedades de um jovem) que encara a arte e a vida como faces da mesma moeda, confiante sobre a vida, curioso sobre a morte ou sobre a persistência da vida (a sua vida, a sua obra) além da morte. O artista é narrador não participante, mas está de corpo presente, encenado sob o escrutínio de uma audiência que o observa (que o tem observado), enquanto vai testando, exposição a exposição, a salga dos objetos em cinza ou bronze.
Rita Ferreira: madeira sobre papel sob vidro
Deixamos Outro no piso de cima e descemos ao rés-do-chão da Rialto6, a um pequeno compartimento com montra para o exterior. Verónica, de Rita Ferreira, a mais recente exposição da artista, é composta por quatro peças. Quatro desenhos de grande escala enchem o espaço que poderia ter sido, numa outra vida daquele lugar, uma loja com vitrina para a rua. E aqui a rua é importante, como extensão do campo visual do observador, distância necessária para garantir afastamento às peças – ver ao perto, ver de longe.
Não é uma novidade o fascínio de Rita Ferreira com dimensões “não convencionais”. O formato de folha A4 com 21 por 29,7 centímetros é apenas uma célula, ou medida de contagem desdobrada num origami de papel maior, maior e maior. No entanto, estas peças, sobretudo nesta sala, ganham outra proporção, ou pelo menos atribuem à figura humana outra pequenez claustrofóbica. Se o primeiro impacto são as medidas dos óleos sobre papel (peças de 2,20 por 2,30 metros), o segundo são os brilhos e os contrastes claro-escuro nos vidros que os cobrem. A parede pintada de escuro absorve o excesso de luz e destaca a figura do fundo, recortando o objeto do espaço. No lusco-fusco (visitei a exposição já o dia tinha adormecido e a luz artificial marcava passo), este sóbrio contraste intensifica-se, levando-nos a imaginar que formas seriam estas, iluminadas apenas por uma lamparina.
Rita Ferreira tem desenvolvido um corpo de trabalho “literário”: um herbário, um arquivo botânico de formas, um catálogo de cores, símbolos xamânicos e rituais que o espectador folheia, lendo não apenas a frente como o verso. Essa é também uma característica dos desenhos de Ferreira: ver do reverso, do lado oposto da superfície “principal”. Lembramos por exemplo Mal-me-quer (2020), exposição na 3+1 Arte Contemporânea, ou a instalação apresentada no Maat (2022) no contexto do Prémio Novos Artistas Fundação EDP – ambas as exposições possuindo uma alegria inocente e “fauvista”, atrevo-me a acrescentar divertidamente alucinogénica. Já a recente exposição Ayni: Casa de Chá (2024), na Brotéria, trilhava uma impressão diferente, com tons de terra. Uma mesa estava coberta por uma layer em vidro transparente, protegendo a superfície. Sobre o desenho pousávamos uma chávena de chá ou café, deixando repousar as borras do fundo e envolvidos pela magnífica Sala dos Couros. Com o tempo, surgiam círculos, linhas curvas, outras manchas retas, e apostávamos em previsões de futuro. Na Rialto6, a mesa perdeu a horizontalidade para se inclinar contra a parede, espelhando o espectador. Não deixa de ser uma vitrina, embora não seja mais um papel. As mesmas manchas são agora outra coisa, talvez sejam cascas de sobreiros e castanheiros, denunciando a sazonalidade do montado que liberta a pele de inverno, talvez sejam gravuras em água-forte ou outra exploração química de impressão… Suposições e premonições. E assim Rita Ferreira desafia o observador com um teste de Rorschach, explorando “a arte de fazer manchas e a arte de as interpretar”. [4]
Ambas as exposições estão patentes até 19 de julho.
[1] Uma referência ao conjunto de 21 pinturas (Cérebro) que compunham a exposição Insone, de 2023, na Cristina Guerra Contemporary Art, conceptualmente ligadas à mente e corpo do artista – a mente as pinturas, o corpo uma escultura no centro do espaço representando os seus restos mortais.
[2] Para os curiosos da cenografia, Fernão Cruz tirou partido de uma diferença de alinhamento das paredes que configuram a Rialto6, usando o espaço intersticial de um pilar saliente para fazer nascer a peça.
[3] Aliás, a técnica papier mâché já tinha sido explorada anteriormente pelo artista, em exposições na Balcony Contemporary Art Gallery (Longa história curta, 2018, e The white goodbye: o que entra pelos olhos e sai pelas mãos, 2019).
[4] Conforme se lê na folha de sala.