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É capaz de se quebrar

Para que alguma coisa relevante ocorra, é preciso criar um espaço vazio. O espaço vazio permite que surja um fenómeno novo, porque tudo o que diz respeito ao conteúdo, significado, expressão e linguagem só pode existir se a experiência for nova e original. Mas nenhuma experiência nova e original é possível se não houver um espaço puro, virgem, pronto para recebê-la[1].

Infinita Medida de Maria Laet nasce da procura do contorno, da sua ausência e da “intercessão de territórios e temporalidades”[2] criada através de gestos que abrem ou ocupam. A artista serve-se da Natureza e da matéria para tratar a passagem do tempo. Elementos naturais e efémeros são, na sua prática artística, agentes ativos no diálogo entre corpo e espaço, resultando numa narrativa que convida a uma reflexão sobre medida (que se define ou está por definir). É sabido que Laet o faz de forma poética e aparentemente subtil, mas, sugiro que se reconheça também, uma força, um gesto de imposição, inquieto, ligado à vontade ou necessidade de marcar presença. Um gesto intuitivo que quer abrir, mas também delimitar, agrupar, transformar.

A artista, que frequentemente coloca o corpo em relação direta com elementos naturais, como a terra, a água e o ar, cria uma conexão visual e conceptual através das marcas e rastros que imprime. Infinita Medida é um conjunto de obras que são pegadas ou assinaturas de uma presença efémera, frágil, mas que é aqui eternizada. É memória do movimento e da ação do corpo no espaço, é vestígio que lembra a impermanência da existência, a transitoriedade do corpo que é, aqui, espelhado na Natureza.

Corpo e gesto como ferramenta de expressão e corpo e gesto como ponte, como metáfora para a complexidade, vulnerabilidade, conexão e caráter cíclico de todas as coisas. Mas há, também, na sua investigação, um desejo em preencher vazios. Maria Laet materializa o intangível e dá forma ao que é ausente. Em Entre Elas (Alguma coisa concreta capaz de se deixar quebrar) (2020) – título emprestado de um poema de Paulo Henriques Britto -, dá corpo concreto ao espaço, preenche-o e ocupa-o com massa em porcelana que molda (e que se torna em medida) e que, para além de ocupar o vazio, cria uma ligação entre os dois troncos que crescem de forma autónoma. Com gestos “sempre subtis mas firmes na sua intenção prospectiva de ansiar as ligações possíveis entre as coisas e os movimentos (…), aproxima-as e relaciona-as nem que seja pelo breve instante que dura a realização da obra”[3]. 

Também na obra Sem título (Ausência) (2011), a marca deixada na areia, que é preenchida e apagada pela água do mar, simboliza o ciclo contínuo de criação e destruição. As marcas deixadas pelos pés da artista, que são gradualmente apagadas pela maré, evidenciam o corpo que esteve, que já não está, mas que agora estará para sempre eternizado na fotografia, no arquivo de gestos e na memória (particular e coletiva). A sua obra é, ao mesmo tempo, individual e universal. Maria Laet regista e compartilha um tempo que é seu, sentido e íntimo, mas que é compartilhado, num ciclo de eterno retorno. O seu gesto, vivo, inquieto, de vontade poética e firme, expande e transforma o espaço. Em Caminho sobre a maré (2022), Laet abre uma brecha numa praia de pedras, de pele[4]. Cria passagem em direção ao mar num gesto intuitivo sim, mas também ansioso, que quer intervir, alterar, ocupar, transformar a partir da matéria e do vazio. O corpo não é protagonista – “a acção é discreta e o seu corpo está recuado na cena”[5] – mas é o meio para fazer nascer um “segredo que vai ser encoberto”[6], para falar de quanto mede a ausência, da permanência que se dá pela ausência e da medida que se apaga.

“A cada matéria a conquista do seu espaço, do seu poder de expansão além das superfícies pelas quais um geómetra desejasse defini-la. Parece então que é por sua ‘imensidão’ que os dois espaços: o espaço da intimidade e o espaço do mundo se tornam consoantes”[7]. Maria Laet conquista para nos falar da transitoriedade da existência, de como o tempo, inevitavelmente, apaga vestígios. Para nos falar de como a presença e a ausência são conceitos interdependentes. Explora-os de forma orgânica, gradativa, permitindo uma revisitação e uma lembrança pelo registo do que foi deixado pelas ações passadas, mas que é infinito. Seja através dos contornos das pedras (Infinita medida, 2024), de duas pessoas que as juntam e testam os limites do elástico (Limite mole, 2023), ou através do desenho de argila que procura forma (Ainda estamos sem forma, 2021), é simbolizado o ciclo perpétuo de permanência e ausência, do temporário que retorna, do que não tem limites e está em movimento contínuo.

Maria Laet trata o mundo natural como marca do infinito, relembra-nos a continuidade pela proximidade, o corpo e o vazio como medida, concreta, capaz de se quebrar.

“Eu adoraria que existissem lugares estáveis, imóveis, intangíveis, intocados e quase intocáveis (…) Tais lugares não existem, e é porque eles não existem que o espaço está em questão, cessa de ser evidência, cessa de ser incorporado, cessa de ser apropriado. O espaço está em dúvida: é preciso incessantemente que eu o marque, que o designe; ele nunca é meu, ele nunca me foi dado, é preciso reconhecer (…) tentar meticulosamente reter alguma coisa, fazer sobreviver alguma coisa: arrancar alguns fragmentos precisos do vazio que se cava, deixar, em algum lugar, um rastro, um traço, uma marca ou alguns sinais.”[8]

A exposição pode ser visitada na Galeria 3+1 Arte Contemporânea até 29 de junho.

 

[1] BROOK, Peter. (1999). Empty Space. Lisboa: Orfeu Negro, p. 4.
[2] Artista sobre a exposição.
[3] Folha de sala, escrita por Catarina Rosendo.
[4] Artista relativamente à obra no video tour Infinite measure by Maria Laet | video tour.
[5] Folha de sala, escrita por Catarina Rosendo.
[6] Infinite measure by Maria Laet | video tour.
[7] BACHELARD, Gaston. (1979). A poética do espaço. Tradução de António da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultura.
[8] PEREC, Georges – Espèces d’espaces (Paris Éditions Galilée, 1974) pp. 122 e 123, traduzido por Mariana S. da Silva

Maria Inês Augusto, 33 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) como estagiária na área dos Serviços Educativos e trabalhou durante 9 anos no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada e actualmente desenvolve um projecto de curadoria de exposições de artistas emergentes. Tem vindo a produzir diferentes tipos de textos, desde publicação de catálogos, textos de exposições a folhas de sala. Colaborou recentemente com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas 2023.

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