Noite com pernas na Sociedade Nacional de Belas Artes
Tem a noite pernas para andar? Francisca Pinto, Manuel Queiró, Mariana Malheiro e Ricardo Marcelino provam-nos, com uma perna às costas, que sim, que a noite tem pernas e quer andar por aí a bailar. Noite com pernas, a exposição coletiva que reúne trabalhos dos quatro artistas na Sociedade Nacional de Belas Artes, refunda a figura da pintura. O tema é o breu da noite: a noite dos notívagos, a noite dos sonhos e devaneios, a noite dos sonâmbulos e intranquilos, a noite de dar às pernas os medos e ansiedades, ou a noite escura do subconsciente, a mesma noite da cinematografia de David Lynch, onde as figuras são vultos e sombras. Todas estas noites cabem dentro da sala e a sua expressão máxima é a pintura – sobre papel, tela ou parede.
São também eles a face de uma nova geração de artistas reconectados com a pintura, sem pudor ou preconceito, fazendo dela uma bandeira (a par de um conjunto de outros tantos, como Sara Mealha, que assina o design gráfico da folha de sala). Bem sabemos que a pintura sempre foi vista como uma poderosa ferramenta de expressão, sistematicamente reinventada, sistematicamente revisitada, da pré-história ao renascimento, dos grandes salons franceses à negação dos pós-modernos, refletindo as mudanças sociais, culturais e tecnológicas dos tempos (incorporando também outra tecnologia à técnica). Porém, Noite com pernas faz da pintura um trocadilho e de expressões populares, títulos; em três momentos, tudo de pernas para o ar: um mural, pinturas soltas nas paredes e uma vitrina ao centro da sala.
Manuel Queiró abre a exposição com um mural. Doze pensamentos flutuam frescos ou colados numa base pintada de branco quente, sobre o branco gélido das paredes da galeria – o convencional white cube. A narrativa espraia-se além vãos (contida pelas limitações físicas do espaço) e basta-lhe esta diferença de matiz (entre a superfície pintada e a superfície para pintar), para que a parede se torne uma grande tela. Um mural que parte da individualidade do pintor e tende à reprodução abstrata de figuras na(s) pintura(s). É, aliás, a “figura abstrata”, além dos tons noturnos, o que conecta os restantes artistas. “O que significa figuração contemporânea?” – perguntam-se. E se para Ricardo Marcelino a resposta não é uma representação fotográfica, mas sim esfumada, como um retrato apagado que lembra giz sobre ardósia ou uma memória meio esquecida – ou, ainda, uma sensação deja vu meio presente no álbum de família –, para Mariana Malheiro as pinceladas (que também são óleo) são líquidas, e camada sobre camada sobre camada trazem densidade e profundidade às telas. Dessa espessura de traço interrompido nasce a figura. E se falámos de uma linha narrativa no mural de Manuel Queiró, essa linha desenha o perfil de um rosto, cujo nariz é o elemento central de uma qualquer identidade e conduz depois as palavras no texto de parede, saltando para a folha de sala, contornando, por fim, as caras flutuantes nas telas de Francisca Pinto. Figuras pouco amarradas aos fundos neutros, como se de balões falantes se tratassem. Que figuras são estas e o que nos querem falar? E se vimos que a noite é o cenário, a “figura” é o personagem central da exposição, seja por representações parcialmente reconhecíveis, figuras humanas distorcidas e contorcidas, até composições totalmente não figurativas onde não há referência direta a nada em concreto.
E sem encanar a perna à rã, os quatros artistas perseguem, num ateliê aberto de procura e experimentação, com cabeça tronco e membros a “figura”, mostrando-nos que a pintura não está de perna bamba. Noite com pernas está patente até dia 22 de junho no primeiro piso da Sociedade Nacional de Belas Artes.