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Mistério, tensão e prazer: a exposição do italiano Enzo Cucchi na Culturgest

Todos os caminhos dão em Roma, e os de Enzo Cucchi foram parar lá no final dos anos 1970, depois que ele saiu da pequena vila italiana de Morro D’Alba para encontrar com a cidade grande que iria deslanchar sua carreira. Ele carregava na mala os contos, mitos, imaginários populares e histórias orais do interior, e a isso misturou as imagens e narrativas da igreja católica e do Vaticano. É nesse encontro do místico, mítico, imagético e simbólico que Enzo Cucchi construiu a sua obra, agora em cartaz na Culturgest, em Lisboa.

Caveiras, animais e corpos disformes populam a exposição Mezzocane em esculturas e pinturas, e constroem um vocabulário sensual, erótico e poético do artista italiano. Seja em cerâmica, bronze ou gesso, as marcas das mãos e dos dedos do artista estão ali presentes. Ele evidencia o tátil e o artesanal em trabalhos que parecem ser muito íntimos e misteriosos. São obras que despertam a curiosidade ao mesmo tempo em que trazem uma sensação um tanto prazerosa de desconcerto.

Bruno Marchand, curador da exposição, contextualiza a obra de Cucchi como uma alternativa relevante ao pensamento proposto pela arte conceitual, que tomou o mundo da arte a partir da década de 1960. “Nos anos 80, o Enzo vira essa figura da quebra de paradigmas. A desmaterialização do objeto era o que estava em causa. A ideia estava acima de tudo. Ele voltou para o trabalho manual num momento em que isso era muito mal visto. Voltou para o objeto, para a pintura, para a mão do artista. Ele retornava ao prazer de fazer. O prazer do corpo, da expressão individual do artista. Tudo o que a arte conceitual achava abominável era o que ele queria fazer”, explica o curador em entrevista à UMBIGO.

A figuração, expressão e imaginação tão caras a Cucchi e a outros colegas artistas, como Sandro Chia e Francesco Clemente, levaram o curador Achille Bonito Oliva a caracterizar o grupo como o movimento da Transavanguardia. “Eles propunham uma ideia descomplexada do que é bonito, do que é feio, do que significa estar bem ou mal feito. O Enzo está muito mais interessado em pôr cá fora um mundo carregado de simbolismo e sugestão do que propriamente preocupado com os grandes valores da lógica contemporânea”, acrescenta Bruno Marchand. Em 1982, o Guggenheim de Nova York expôs as obras de alguns desses artistas e, em 1986, aos 36 anos, Cucchi tomou o celebrado museu americano com uma mostra individual.

Na Culturgest, a sensualidade está também evidente na maneira como Cucchi desenhou a expografia da mostra, sugerindo que o corpo do visitante seja desafiado pelo espaço. Ele construiu aquilo que Bruno Marchand chama de “muro” entre a primeira sala e o corredor, transformando o lugar de passagem em um apertado espaço expositivo. Uma mesa longa e irregular é base para obras como esculturas que parecem criar cenários e personagens, mas estão pintadas apenas pela metade; curiosas peças que combinam cerâmica e pintura; corpos que expressam algo entre dor e prazer; e um marcante pássaro caído que equilibra duas bolas de vidro nas suas garras.

Outro muro circular que envolve o pilar estrutural do prédio é base para obras cujas imagens são de ancoramento, aprisionamento, e peso. Em um terceiro momento, um “bosque de desenhos”, conforme explica Bruno Marchand, suspende papéis e telas, e continuam a popular a exposição com jogos de tensão e re-imaginação.

Cucchi não explica seus símbolos. E é no instigante mistério entre tensão e prazer que ele deixa as duas digitais.

Mezzocane, de Enzo Cucchi, está patente na Culturgest, em Lisboa, até 30 de junho.
Julia Flamingo não escreve ao abrigo do AO90.

Julia Flamingo é jornalista e pesquisadora especializada em arte contemporânea, nascida em São Paulo. É fundadora da plataforma digital Bigorna (@bigorna_art), que tem como missão usar linguagem simples e mediação para aproximar públicos da arte contemporânea. É redatora da rede global de curadores de arte Arpool.xyz, e curadora e escritora do grupo português Cultural Affairs. Julia foi jornalista de arte e crítica da revista Veja São Paulo e contribuiu para celebrados projetos culturais como o 4Cs, financiado pelo Programa Europa Criativa, SP-Arte e Bienal de São Paulo. É formada em jornalismo pela Universidade Mackenzie e em história pela PUC-SP, e tem mestrado em Estudos Culturais na Universidade Católica Portuguesa de Lisboa.

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