desde los azules, na Kunsthalle Lissabon
Identidade. Essa coisa mutante e mutável. Que é corpo e é multidão, que é coro e grito no vazio. Identidade. Essa coisa vaga. Incerta para uns, tão certa para outros. Identidade. Sempre tão subjetiva, e agora dizem-nos: não, é objetiva – é a História, pretérita, única, gloriosa. Como se a História fosse singular, escrita na pedra.
Identidade. Como se fosse um cristal: puro, intocável, inalterável, inalienável. Identidade. Plasmada num corpo marcado de celulite, de pregas, abas, aqueles riscos cicatrizados no braço pela lâmina branca de cerâmica partida, construída por ele, transformada por ele; construída com ele, transformada com ele; construída sobre ele, transformada sobre ele. Identidade. Uma forma idealizada, ideológica, política, campo de batalha com regimes, com os outros corpos. Identidade divergente. Identidades ausentes, plásticas, amorfas, apáticas, formadas e depois conformadas – pelo Estado, pelo Espaço, pelo Tempo, pela Cultura, pelas políticas da cultura liberal, iliberal, autocrática, nacionalista, universalista, cosmopolita liberal, cosmopolita iliberal.
Um distúrbio de identidade, uma crise de identidade, uma neura nauseabunda que revira os olhos. Com máscaras, sem máscaras. Defronte do espelho, longe do espelho.
A Identidade do Eu. A Identidade da UE, que em inglês é EU. Identidade queer. Identidade afro. Identidade diaspórica. Identidade colonial. Identidade pós-colonial. Identidade de-colonizada. Identidade ecossexual. Identidade neoliberalizada. Identidade coletiva. Identidade nacional, da nação – da nação valente e imortal.
Não. Nunca. Jamais. Eu. Eu. Eu. Só Eu, sem redes, sem estruturas laborais e de solidariedade, sem outro.
Je est un autre. Não porque sou projeção de outros, mas porque me recuso a ser quem quer que seja, o que quer que seja, porque é tudo um tédio terminal – uma persona, uma personagem, uma representação encenada, performatizada, artificial de Terminal Boredom, por Izumi Suzuki. Sim. Identidade ausente, absorta, a olhar para o teto. Vegetal.
Quando Eu morrer, dêem-me de comer aos porcos. Eles que se encarreguem da minha identidade.
Estou a projetar-me num trabalho alheio? Sim. Sempre. Hesito em ser ou não ser. Não há questão. Há apenas e tão só uma decisão. Que nem é minha, é de outrem. Quem sou e o que sou, não importam. Neste corpo sem forma, deformado, descolado, desolado.
É sobre estes meandros, por vezes inescrutáveis, complexos e quezilentos, da identidade e do corpo, que Yina Jiménez Suriel assina a curadoria de desde los azules – uma curadoria especial, que faz do dispositivo de Rotação de peças também ele um construtor e desconstrutor de identidades.
Iman Issa, Marwa Arsanios e Naufus Ramirez-Figueroa regressam para os 15 anos da Kunsthalle Lissabon, com uma seleção que, embora remeta para os trabalhos expostos outrora neste espaço, aprofunda as questões anteriormente elencadas, com novos trabalhos em que há uma clara performatividade no modo como artistas e curadora entendem a arte, a vida, a política e as histórias dos países que evocam.
Iman Issa entende os museus como espaços de poder, de conhecimento, mas também fábricas de identidades e políticas ideológicas. Os objetos guardam mitos e espantos que movem massas e coletivos. Esses objetos tornam-se ícones, que se tornam meras coisas por via do turismo cultural de massas. A série Heritage Studies (2015-) é uma reflexão profunda sobre a forma como apreendemos os objetos nos museus – uma performatividade circular, blindada por vitrines e dispositivos diversos – e como as políticas culturais entendem o passado e respetivas produções, reduzindo-as a meros objetos totémicos. Essa ambiguidade ou ambivalência, entre o assombro de facto e a capitalização museológica, está presente em Heritage Studies #30 (2020) – a abstratização ou objetificação de um cilindro presente no Museu Internacional de Artes e Culturas Antigas. O cilindro é reduzido à sua qualidade formal e objetual, aumentada e mediada pela legenda e nota de conservação ou arquivo.
Em “A indústria mais bonita do nosso país” (1958), publicado na revista Al-Hilal, alguém indagava sobre um edifício industrial que servia de escola de dança para mulheres. Essa escola estaria encarregue de treinar e modelar os corpos das “novas mulheres” modernas, através da dança e do movimento. Olga’s Notes, all those restless bodies (2014) é uma reflexão sobre um projeto político baseado na dança. Marwa Arsanios filma uma série de coreografias que remetem para esse artigo, no qual os corpos parecem perder autonomia, identidade, para finalmente se perderem numa inquietação. Aqui, a identidade dos corpos é dúbia, tão dúbia quanto mais dúbio for o olhar do espectador ou daqueles atores políticos que quiseram fabricar esses corpos, sistematizando-lhes os movimentos.
O corpo é a ferramenta de trabalho e reflexão artística e política de Naufus Ramirez-Figueroa. Sem pudor, livre de qualquer complexo, o corpo é a verdade escatológica e a marca, que se dilata e deforma, das coisas na vida. Ramirez-Figueroa dança, num equilíbrio instável, a arquitetura icónica da Guatemala. O seu corpo serve de fundação a uma Arquitetura Incremental (2015), ou troços de edifícios que se vão empilhando sobre si, numa torre. Quando a dança começa, a torre é desafiada a manter-se intacta, hirta, até que cede e desaba em cima do artista com os movimentos. O espaço arquitetónico é analisado segundo o modo como é capaz de alienar os corpos, desde a arquitetura colonial à arquitetura pós-colonial.
Depois de Rotações, novas obras entram em cena.
A estrutura cilíndrica de Iman Issa dá lugar a uma emulação do Papiro da Cantora Anhai, com Feitiços do Livro dos Mortos – um documento que ocupa uma posição central na cultura egípcia, entre o medo e o desejo, com reverberações nas identidades e memórias atuais do país e do mundo. Um objeto grande desenrola-se, pintado de vermelho. Com a legenda ao lado, cabe ao espectador projetar e ficcionar hieróglifos, feitiços, imaginando a entoação sonora e remota de Anhai.
Have you ever killed a bear? Or becoming Jamila (2014) é um vídeo sobre Jamila Bouhired – um ícone feminista e socialista da libertação argelina, que se elevou acima de toda uma infraestrutura social e política que remetia o papel da mulher para as margens e o silêncio. Jamila tornou-se um ícone mediático. O problema é que os ícones adquirem uma aura ou identidade que escapa muitas vezes à figura original, construindo sobre ela visões e factos que a transcendem. Marwa Arsianos indaga sobre o que é tornar-se um ícone e o que significa lutar pela liberdade, num processo que tanto tem de retrospetivo, como de performativo e documental (a investigação parte novamente da revista Al-Hilal, dos anos 1960 e 1970).
Print of Sleep (2016) é um dos mais intimistas projetos de Ramirez-Figueroa – uma performance que regista no corpo a marca dos afetos e dos sonhos. O corpo não esquece. O corpo deixa de esquecer. O movimento dos corpos fica registado e desenhado no corpo, nas pregas dos lençóis, na roupa amarfanhada dos performers. Há um abandono à conjugalidade, mas também à solidão onírica, ao repouso – e, porque não?, à insónia.
A economia aparente de desde los azules é inversamente proporcional à profundidade das questões que levanta. As três obras (seis, no total, mas em tempos diferentes) e os três artistas invocam inquietações milenares que remetem, muitas vezes, à construção de estados-nação de histórias e territórios fragmentados por temporalidades e ocupações distintas. Egito e Grã-Bretanha, Argélia e França, Guatemala e Espanha, tudo é um confronto e um conto interminável, entre o que pode ser reparado e o que está para lá de reparável, carregando as cruzes e os objetos sacros de um passado, um presente e um futuro em perpétua reconstrução e movimentação.
desde los azules está patente na Kunsthalle Lissabon até 17 de agosto. A Rotação 2 proposta pela curadora Yina Jiménez Suriel acontece a 4 de julho.