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Vaivém de Francisca Pinto no espaço OSTRA

Daniel Arasse, nas suas reflexões sobre pintura, apelava-nos[1] a dirigir o nosso olhar para os elementos concretos que compõem uma obra de arte, sem a sobre-interpretar. O seu modo de pensar estimulava o apreciador de arte, ou o historiador, a renovar[2] a forma como via uma obra de arte, ou o modo como entendia a recepção da arte[3].

Mas Arasse não queria dizer, com isto, que a obra de arte não devesse ser munida, quando estudada, de todas as ferramentas científicas que acompanham habitualmente o historiador[4]. Muito pelo contrário. O que Arasse pretendia era chamar a atenção para o que a obra concretamente oferecia, no exato momento de a fruir, no domínio sensorial[5]. Por outras palavras, encontrar um ponto de “equilíbrio, entre a visão e a reflexão”[6].

Arasse considerava importante o enfoque das “impressões sensuais”[7] prévias, no primeiro contacto com a obra, mas sem excluir “os contextos culturais, históricos e ideológicos em que as obras foram produzidas”[8].

Nas suas Histoires de peintures de Daniel Arasse: Le rien est l’objet du désir, que consistiam em registos áudio das suas extensas reflexões sobre pintura, mencionava, muitas vezes, o modo como uma obra o tocava, o intrigava, com os seus pormenores inusitados, ou as suas cores imprevistas. E referia Matisse, sobretudo os seus desenhos, em tons de azul, como tendo o dom, para ele, de provocar o espanto. Em suma, não excluía, da obra, a capacidade de evocar e despertar estímulos sensoriais, e o quanto os mesmos, ajudavam a trazer novo conhecimento, e compreensão da obra, assim como aproximação ao esclarecimento dos seus enigmas. Estar atento aos seus pormenores e às subtis mudanças. Contrair a habilidade de se deixar impressionar, perante a surpresa, perante o desvio, perante a estranheza.

O caráter polissémico das obras de Francisca Pinto, presentes na exposição Vaivém, patente no espaço OSTRA, parece submeter-nos a esta possibilidade. Conduz-nos a uma oportunidade única de estabelecermos diálogos com a obra, de nos indagarmos, questionarmos, e ao mesmo tempo, verter, sem culpa, o nosso espanto, a nossa inabilidade para, logo de imediato, enquadrarmos a obra, classificarmo-la. O grupo de desenhos/pintura de Francisca Pinto obriga-nos a ver, e aqui, mais uma vez, ver, na acepção de Arasse. Não a lançar logo, sobre a obra da artista, um mar de categorizações e afirmações deterministas.

A ideia pré concebida de que, à partida, qualquer obra nos é familiar, ou de que já a podemos classificar, pode distrair-nos, e pode, também, fazer-nos escapar pormenores importantes[9].

Nas obras de Francisca Pinto é necessário quedarmos, abrandar o ritmo. Pararmos para ver, ver como deve ser, ver cada elemento, cada pormenor. E nos trabalhos da artista encontramos muitos pormenores que precisam de ser olhados com muita atenção. Obtemos rostos diluídos, perfis humanos que se entreolham. Muitos deles obtidos por meio de gestos aquosos, de um diáfano e constante fluxo, desferidos pela artista. Observamos triângulos amorosos? Conversas escutadas, multidões? Deparamo-nos com lugares solarengos, aparentemente paradisíacos, mas que, a qualquer momento, ameaçam desmoronar e dar lugar a enredos intricados e sombrios.

A artista deixa pontas soltas. Levanta um pouco o véu das suas histórias, mas não nos conta todo o enredo. Cobre umas partes. Deixa-nos à mercê de uma ligeira ambiguidade semântica, ajudada por uma porfiada deambulação, entre o figurativo e o abstrato.

Francisca Pinto aguça o apetite. Adiciona atributos à obra, como o enigma, o ficcional, que se disponibiliza, por fim, como opera aperta, à interpretação do observador.

Vai distraindo, ainda, o próprio observador, com exuberâncias cromáticas, erotismos proibidos, afastando-o, cada vez mais, da sua interpretação racional e classificadora.

Rostos e fragmentos cerâmicos aparecem dispostos sobre caixas posicionadas no solo. Revelam outras interações. Conversas em surdina, segredos por revelar. Mantem-se o gesto singelo e doce da artista sobre a superfície branca da matéria, de manchas azuis, brandas e sinuosas. Aparecem rostos grandes, e pequenos. Olhos fundos, escondidos sobre sussurros ao ouvido. Rostos que partilham intimidade, outros que os observam, talvez, sem consentimento. No meio desses olhares, surgem também mãos, de um azul intenso que recorda a azulejaria barroca portuguesa, e os gestos solenes de nobres e fidalgos.

Vaivém de Francisca Pinto, com curadoria de Mariana Lemos, tem o apoio da FLAD através do programa Flechada, e está patente no espaço OSTRA até ao dia 16 de junho.

 

[1] Crespo, N. (2015). Daniel Arasse, não se vê nada. Descrições. Revista de História da Arte, n.º 12, pp. 290-293. Disponível em <https://run.unl.pt/bitstream/10362/16973/1/RHA_12_REC_2_NCrespo.pdf>
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.
[4] “Os protocolos de análise e de observações heterodoxos e canónicos”, referidos por Nuno Crespo, especialmente aqueles de que, cientificamente, a história de arte se recorre, aquando da análise de uma obra de arte.
[5] Ibidem.
[6] Ibidem.
[7] Como nos diz Nuno Crespo no seu texto.
[8] Ibidem.
[9] Lambert, M. F. (2022). Compreender A Investigação em Artes (Pintura): Conversation Pieces – Variantes de Breve (In) Visibilidade – Parte II, A Pintura é Uma Lição, sciencia potentia est. António Quadros Ferreira (Coord.). Edição i2ADS. Edições Afrontamento, p. 372.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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