Entrevista a Luísa Salvador, autora da Capa do Mês
Luísa Salvador é artista visual e investigadora, doutora em História da Arte Contemporânea na NOVA FCSH, com um projeto intitulado Paisagens Cruzadas: caminho e rasto na arte contemporânea. Atenta às imagens e aos tempos que se desenrolam a par do, ou em paralelo ao, presente, Luísa pensa as ressonâncias entre corpos, espécies, mundos, ou, mesmo, entre dimensões – há, também, uma busca qualquer por um esoterismo, tratado com muita seriedade e curiosidade. Para a Capa do Mês da UmbigoLAB, em junho, desenvolve um díptico que conversa com o tema da próxima edição da revista, Umbigo #89: o Apocalipse.
Falar sobre a tua prática artística é falar de experiências de contacto com o mundo que se fixam, visualmente, num equilíbrio de formas delicadas e harmoniosas. Como vês as semelhanças – ou as diferenças – entre as tuas composições visuais e a tua maneira de viver e de te movimentar no mundo?
Creio que é tudo parte da mesma equação. O filtro do olhar, a curiosidade com que nos entusiasmamos com o que nos rodeia, os pequenos gestos, sopros, existências, são questões essenciais à criação artística. Cada folha, cada limão, cada pedra, comportam em si todos os elementos naturais, que se uniram para os compor de um determinado modo. E embora todos pertençam à mesma família de afinidades, cada um destes elementos é único e singular. Ver no particular o universal, e no universal o particular, responde ao mesmo. No momento em que temos esse discernimento e uma consciência clara sobre estes deslumbramentos, viver, movimentar-me no mundo ou criar, é uno.
Seja no que toca à criação artística ou à investigação académica e escrita, o teu trabalho parece sempre manifestar um esforço de pensar o Tempo e os seus rastos concretos e afetivos. O que mais te fascina sobre a dimensão temporal da vida e da não-vida?
Na minha investigação académica, que rapidamente se tornou numa relação de reciprocidade com o meu trabalho artístico, aprofundei a questão do rasto, enquanto vestígio material referente a um processo artístico seu antecessor. Pensar no que fica, depois do que é feito, foi um exercício de reflexão muito definidor. Torna-nos mais vigilantes sobre o que criar, porque irá perdurar além de nós. O que perdura, o que se perde, o que é acarinhado e o que é resgatado, o que cai no esquecimento, são mecanismos que dão origem a narrativas mnemónicas e históricas.
Pessoalmente, fascina-me pensar o que é vivo e inanimado, enquanto objeto de possível criação, passando necessariamente por questionar a sua origem, a sua dimensão temporal. Podemos sempre analisar o nascimento de uma flor e o seu (curto) tempo de vida, mas podemos também inscrevê-la no ciclo anual da primavera, podemos investigar quando foi pela primeira vez documentada a sua existência, podemos averiguar quantas pessoas também a celebraram e quais as suas ideias sobre essa mesma flor. A dimensão temporal é parte essencial para o conhecimento que queremos ter de qualquer elemento que nos rodeie.
E de que maneira a prática da escrita – e, mais especificamente, no formato da crónica – se relaciona com esta investigação mais ampla sobre a passagem do tempo?
A escrita, e especificamente a crónica, é uma forma de captar instantes com que me cruzo no quotidiano. O trabalho artístico tem uma certa tarefa de tradução. Qual a forma mais eficaz de comunicar uma ideia? A memória de um incêndio através de uma tábua de madeira queimada e pintada; as ranhuras de trilhos na imensidão do deserto através de desenho com sulcos e rasuras; a evocação de fósseis vulcânicos de uma erupção milenar através de espécies botânicas atuais calcadas em cerâmica. Estes exemplos são trabalhos que desenvolvi, com tempo, reflexão, morosidade nos processos. A escrita permite-me ter contacto com ideias fugazes que, de alguma forma, quero que se perpetuem. De episódios ou lembranças, ou sensações, que não só não quero que fujam, mas quero que estabeleçam relação com quem as lê.
A geologia é um elemento frequentemente presente na tua obra – como, por exemplo, em Fool’s Gold (2018) ou Semelhança por contacto (2021). Como surgiu este interesse e como é que o estudo de diferentes rochas e formações geológicas te tem levado a esculpir uma outra perceção sobre o mundo?
O meu interesse pela geologia surge na minha infância. Tenho exemplos próximos de entusiastas de minerais e gemas. Lembro-me de ir à feira dos minerais em Lisboa com a minha irmã e os meus primos quando era pequena. O meu avô paterno transmitiu-nos esse legado, por via de minérios que recolhia no seu trabalho. A minha avó materna também sempre se interessou por gemas e pedras semi-preciosas. Por isso, não de uma forma forçada, mas antes por convivência, estive perto da geologia sem o saber. Muito mais tarde, com leituras académicas, deparei-me com o trabalho de Robert Smithson (1938-1973). Smithson, artista norte-americano, tem uma obra artística fundamental na perceção sobre o território, na década de 1960 e início da de 1970. Mas são os seus artigos e escritos que mais me influenciaram, com a sua dimensão geológica sobre o território e o tempo. Os seus textos elevaram a questão da geologia a uma lógica mais ampla de entendimento. Pensar a geologia do ponto de vista da escala, do que nos rodeia, do que nos forma, a sua dimensão temporal que é muito mais lenta e que nos antecede e nos sucederá. Percecionar o mundo do ponto de vista da geologia ensina-nos a ser mais empáticos e a relativizar muitíssimo a nossa existência enquanto espécie.
Considerando, ainda, que és editora da publicação Almanaque — Reportório de Arte e Esoterismo, existe algo de transcendental na motivação para as tuas pesquisas? De onde vêm os universos de Luísa Salvador?
O Almanaque foi um projeto editorial do qual fui fundadora e editora e que surgiu de um conjunto de fatores. Um deles era a questão do cruzamento entre arte e esoterismo, das possíveis espiritualidades e as suas aproximações a temáticas delimitadas. Cada número obedecia a um tema, e a equipa de autores era livre de escrever e refletir sobre esse tema segundo os seus próprios critérios. O que fui percebendo, e daí a lógica de um projeto editorial com uma equipa maioritariamente fixa e um convidado por número, era que a maioria dos autores tinha uma faceta menos visível. Muitos optaram precisamente por usar pseudónimos, como campo de liberdade para desenvolverem ideias e princípios mais esotéricos ou espirituais. Eu própria atuei desse modo, utilizando o pseudónimo Luísa Montanha e Vale, editora e autora dos prefácios de cada número. É, por isso, um projeto muito específico, com também condições raríssimas, de disponibilidade e entrega total por parte de uma equipa, e possibilidades de produção com pessoas que acreditaram nesta publicação. A espiritualidade e o esoterismo são apenas mais uma camada através das quais podemos perscrutar o mundo. E convém irmos mantendo a mente aberta ao desconhecido e à curiosidade por novos universos. Dentro ou fora de nós.
O que nos podes dizer sobre trabalhos ou interesses que se delineiam para o futuro? Para onde imaginas rumar a seguir?
Está tudo em aberto. O importante é trabalhar. Espero continuar a participar em exposições coletivas e individuais, poder escrever e publicar, e ter pessoas que acreditem no que desenvolvo e penso.