Entre Manhãs de Inês Moura na Casa Museu Bissaya Barreto
A exposição individual de Inês Moura, Entre Manhãs, na Casa Museu Bissaya Barreto, enfrenta um desafio particular: integrar-se à riqueza de detalhes deste lugar. Antes de abordar a mostra, porém, importa destacar o percurso da artista e o processo de conceção da exposição.
Nascida em Coimbra, Inês Moura é uma artista que investiga profundamente o conceito de identidade através de suas experiências entre Coimbra e São Paulo. Formada em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e mestre em Artes e Processos Artísticos pela Universidade Estadual Paulista, Inês viveu quase 12 anos em São Paulo. O seu retorno a Portugal, após uma longa jornada de experiências e reencontros, marca mais uma etapa na sua trajetória identitária.
A exposição é disposta em seis ambientes, começando com provocações subtis entre azulejos intrincados, estufas e plantas não convencionais. Este cenário desafia tanto a artista quanto a curadora Estefânia r. ao tentar integrar as obras, que às vezes se diluem, sussurram, gritam ou se sobrepõem, neste espaço expositivo não convencional.
A visita começa de forma inusitada, com a entrada por uma sala lateral, onde o título da exposição e os nomes da artista e da curadora são destacados, mas sem textos explicativos ou títulos das obras. Estes mesmos são encontrados apenas na folha de sala, o que acaba por convidar os visitantes a atribuírem significado baseando-se apenas nas imagens e no seu apelo estético, sem a interferência de palavras. Esta primeira sala busca criar uma atmosfera fantasmagórica, incentivando uma experiência mais estética e intuitiva.
A primeira obra apresentada, junto ao título da exposição, é uma imagem feita num espelho, representando uma figura antropomórfica que é e não é Inês, simultaneamente. A imagem possui tonalidades azuladas, estas que se repetem em outras obras que dialogam entre si. A primeira obra revela-se, então, como um autorretrato quase abstrato da artista, expondo esta condição de lugar e não-lugar, ao mesmo tempo, dentro do reflexo. O longo corredor que leva à próxima sala reflete sobre temporalidade e a trajetória da própria Inês, remetendo a ideias de territorialidade, de espaços entre, de infusão e assimilação da substância temporal.
Na segunda sala, uma vasta parede branca conduz ao ponto central: um retrato desfocado de Inês, a Monalisa desta exposição, explora mais uma vez a cor azul. Este retrato, colocado sobre um suporte branco, contrasta com a obra anterior, criando uma continuidade estética. O tom azul, aqui, é simbólico, ligado às linguagens das cores, flores, signos do zodíaco e sonhos, cumprindo a proposta da exposição de explorar o “entre” – espaço intermediário e subjetivo da artista, mas que também pode ser lido como “entre”, do verbo entrar, como se entrássemos nas profundezas de Inês.
Um detalhe que chama a atenção são as polaroides posicionadas de forma elevada, dificultando a contemplação para pessoas de menor estatura ou com deficiência visual (nossa miopia quase nos impede de experienciar esta narrativa polaróidica); em todo caso, dentro desta narrativa azul, uma obra se destaca particularmente, chamada O VAZIO QUE DEIXASTE EM MIM #2. Na sala principal, as alturas variadas das obras, umas altas e outras mais baixas, criam uma harmoniosa musicalidade visual, fazendo sentido estarem expostas da forma que estão. O trajeto de retornar à sala principal após a sala lateral acentua a temática do “espaço entre”, transformando os visitantes ao longo do caminho – afinal de contas, não se entra num mesmo rio duas vezes.
O salão principal é disruptivo na configuração e dialoga pouco com as salas anteriores. Este espaço claro, branco, acolhe uma série de treze autorretratos matutinos, onde uma colcha aparece constantemente, sugerindo um valor afetivo. A série de retratos revela partes do corpo da artista sem mostrar o seu rosto, desafiando convenções de representação feminina e controlando a forma como é observada. A figuração do corpo dança consoante à musicalidade da exposição, rítmica.
Outro espaço que chama a atenção é a terceira sala, que apresenta duas imagens escuras. Uma retrata uma cama pela manhã, enquanto a outra mostra o dorso de Inês. A combinação de luz e sombra remete ao chiaroscuro, evocando uma estética Caravaggesca muito sensual e sensorial. Gostaríamos de tocar nesta obra, se nos fosse permitido. A iluminação natural da tarde adiciona um elemento teatral à exibição, tornando o sol, que entra pela janela e recai sobre a foto dorsal de Inês, um agente integrador da obra. Participam do espaço, ainda, variadas linguagens artísticas no domínio da instalação, como a obra Em Desalinho. A disposição da sala com as duas imagens escuras, de frente uma para a outra, com uma poética de imagem semelhante, em contraste com com a peça instalativa na sala adjacente, cria um interessante diálogo visual. A oposição entre a serenidade das imagens no primeiro espaço e a instalação na sala seguinte parece sugerir uma jornada emocional da própria artista, suscitando a idéia de memória, espaço, corpo e falta. Essa transição entre as diferentes atmosferas e abordagens artísticas é, sem dúvida, uma parte crucial da experiência da exposição, levando os espetadores a refletir e apreciar as múltiplas camadas de significado presentes no espaço expositivo.
A última obra à qual a visita é obrigatória está situada fora da Casa Museu, na estufa. Chama-se Cœur, uma pedra encontrada no Brasil, moldada em ferro, que simboliza o coração da artista. Este ambiente, envolto por plantas e calor, oferece um aconchego visceral, simbolizando a profunda fusão pulsante entre o corpo humano e os corpos em constante movimento de fotossínteses ali presentes. A peça evoca os estudos pós-naturalistas que discutem a problemática do Antropoceno, enquanto faz uma notória referência ao Nascimento de Vênus de Botticelli, pela sua colocação suspensa frente aos motivos escultóricos de concha do interior da estufa, como se dela emergisse aquele corpo – de certa forma, o corpo da artista.
Por fim, a exposição de Inês Moura é um mergulho na subjetividade, memória e identidade da artista, integrando delicadamente as suas experiências transatlânticas e propondo uma nova leitura do espaço e do tempo. É possível visitá-la até o dia 29 de junho, com entrada livre, sendo este evento inserido no Programa Convergente do Anozero’24 – Bienal de Coimbra.