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Arquivo ou Caleidoscópio? de Nuno Nunes-Ferreira na Fundação Vasco Vieira de Almeida

Encontra-se a decorrer, na Fundação Vasco Vieira de Almeida, a mais recente exposição do artista Nuno Nunes-Ferreira, que contou com a curadoria de Verónica de Mello.

Composta por 9 obras exibidas em diferentes espaços do edifício, e com um tema de rápida identificação – época que marcou a história de Portugal, 25 de Abril e pós 25 de Abril -, a exposição é, na verdade, tão complexa e de tamanha profundidade que é importante situá-la, desde já, num campo de investigação assente na História, Identidade e Memória, campo esse que tem sido, de resto, habitual nalgumas das criações do artista. Numa abordagem de carácter experimental e conceptual, Nuno Nunes-Ferreira, por via de registos e outros materiais, trata a sociedade e a sua transformação, um tempo e uma memória (coletiva e individual) em que questiona estruturas e narrativas de poder. Desperta-nos para um pensamento crítico e para a possibilidade de novas perspetivas, contribuindo para o desenvolvimento de uma explanação conjunta através de um processo dinâmico, energético, vivo e contínuo de revisitação ao passado.

O artista reconhece que o seu trabalho parte de uma prática que se aproxima à acumulação. Numa obsessiva recolha de informação e documentação, que pode abranger desde cartas a registos vários como jornais, livros e revistas, constrói um arquivo de memória, assente na preservação e lembrança de um tempo específico. Recria contextos e assinala um tempo histórico através de objectos que se apropria e que transforma através da sua utilização para a construção de obras de arte. “Arquivo ou acumulação, certo é que o volume de documentos está em constante crescimento, sempre incompleto e invariavelmente desorganizado; e é aqui nesta (des)organização, de constantes encontros e desencontros, que o considero mais próximo da prática de acumulação (…) é a obra terminada que constrói o arquivo e não o contrário”.[1]

Sem ficar refém desta acção e não se limitando a uma agregação, cria uma óbvia e estreita relação com os eventos históricos que eterniza, sempre numa premissa de abrir a possibilidade para uma contínua reorganização, desafiando, assim, a memória, reavivando-a através de esquemas visuais que nos absorvem.

O título desta exposição é, na verdade, uma pergunta: Arquivo ou Caleidoscópio? É provocativa na medida em que parte efetivamente de um arquivo, mas faz-nos questionar a narrativa apresentada. Demanda que façamos uma escolha, uma análise pessoal, “que se questione os jornais da época de acordo com a bagagem histórica”[2] e experiências de cada visitante. Mas é mais que isso, se não vejamos: caleidoscópio é um dispositivo óptico que cria padrões visuais simétricos e coloridos através da reflexão de pequenos objectos entre espelhos inclinados. Um tubo com uma extremidade transparente e outra opaca capaz de alterar o que é percepcionado. A imagem altera-se sempre que o giramos, é o movimento que muda as posições e disposições dos pequenos objectos coloridos em relação aos espelhos, criando novos padrões. Tal como o caleidoscópio, também esta exposição e a narrativa que é apresentada pode ser alterada ou transformada segundo o movimento e o olhar do público. É um arquivo vivo, sujeito a renovadas narrativas através da sua revisitação, mas também à hipótese de novos pontos de partida. A própria mostra é já uma visão, uma seleção deste e não daquele jornal, desta e não daquela obra. Arquivo ou Caleidoscópio? parte de um arquivo, de um conjunto de informações e dados que foram organizados e preservados para referência de um momento específico mas que, se não for atualizado ou alterado deliberadamente, é estático e morre. Neste caso, é alimentado pelo artista, mas também por quem olha agora a exposição através da soma da uma leitura individual àquela que é a narrativa principal.

É também provocativa na medida em que relembra que toda aquela informação e notícias, são, também, manipuladas e fruto de uma seleção. Na obra Visado pela Comissão de Censura (2023), instalação composta por 13 obras, é o próprio artista que, recorrendo à utilização de tinta negra, cria manchas opacas, deixando apenas visível frases como “visado pela comissão de censura”, à excepção de uma, que é coberta por tinta vermelha onde se pode ler “este jornal não se submete à censura”, aludindo à falta de liberdade de expressão, relembrando que era o Estado que controlava estritamente o que poderia ser divulgado pelos meio de comunicação e que qualquer conteúdo que fosse considerado crítico ao regime e contrário aos valores ou potencialmente subversivo era proibido ser publicado e divulgado.

Para além da tomada de posição crítica relativamente à censura, fá-la também em relação a discursos e documentos oficiais através das obras Discursos de Salazar (2023) e 48 anos (2024), onde perfura 6 livros e 49 Diários do Governo (entre 1926 e 1974) com uma broca de 90 mm e 120 mm.

A Palavra (2020-2024) é a obra que mais impacto visual tem. Trata-se de uma instalação de jornais originais e recortes recolhidos e colecionados pelo artista, que pode ser olhada de vários prismas e percepcionada de diferentes modos. É um labirinto formado por seis paredes, forradas por 48 jornais, que abrangem os anos 1974/75 e 76. Criam uma imersão num universo de informação por onde a nossa atenção divaga através de manchetes mais ou menos sensacionalistas, carismáticas, humorísticas, onde é possível sentir a inquietação e efervescência social e política da época. A nossa atenção é reativada com os recortes e colagens que Nuno Nunes-Ferreira emoldura, dando destaque a determinadas palavras e frases como “Que descolonização?” ou “O povo libertará” que se repetem, lembrando-nos também do comportamento obsessivo que originou este arquivo e esta obra. É importante referir que não se trata de uma mera apresentação de jornais de época; existe, sim, uma escolha premeditada que convoca um passado recente, traumático no nosso país, que vai sendo, de forma mais ou menos consciente, esquecido, e que aqui é resgatado através de composições visuais formais.

Arquivo ou Caleidoscópio? trata uma realidade que se reflete nos dias de hoje. Na obra Um povo unido jamais será vencido (2017) – instalação composta por 5 espelhos de grande dimensão forrados a autocolantes originais do pós 25 de abril -, Nuno Nunes-Ferreira “deixa espaços por preencher o que permite que o espectador se reveja a si próprio (…) numa imersão histórica neste espaço de tempo”[3]. Essa possibilidade, de vermos o nosso reflexo, pode também sugerir o exercício de autocrítica. Estaremos voluntariamente a esquecermo-nos da fragilidade do sistema? A esquecermo-nos do período que foi fundamental para a garantia da valorização da liberdade e democracia? Da expressão?

Vejo, no processo de construção artística de Nuno Nunes-Ferreira, uma ação responsiva a um estado que, em parte, presenciamos ainda em contexto atual. Através de Arquivo ou Caleidoscópio?, instiga-nos a assumir uma leitura crítica para que seja sempre reafirmado o compromisso com os princípios democráticos que foram conquistados. Relembrar o 25 de Abril e celebrá-lo, como aconteceu este ano nos 50 anos da Revolução, serve também para um momento de reflexão sobre o estado atual dos direitos civis no país. É uma oportunidade para avaliar e relembrar os progressos feitos e os desafios que ainda existem na sociedade. Relembrar a luta intensa para a qual o coletivo contribuiu e deverá continuar a contribuir para que a esperança não se perca, e para que seja intensificada a força através de uma posição política, na procura pelas liberdades individuais e direitos coletivos. 

Arquivo ou Caleidoscópio? pode ser visitada até outubro na Fundação Vasco Vieira de Almeida através de marcação prévia.

 

[1] Artista em entrevista para a Contemporânea, a propósito da exposição 1440 minutos, na Galeria Baginski. Disponível em <https://sub.contemporanea.pt/outubro2016/55/?fbclid=IwAR2r4Emf2ysH8i06sdk2_m_NqvR8epuybk8frXZNjYp_2McWAsU0jKVU81I>.
[2] Verónica de Mello na folha de sala da exposição.
[3] Informação presente na legenda que acompanha a obra.

Maria Inês Augusto, 33 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) como estagiária na área dos Serviços Educativos e trabalhou durante 9 anos no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada e actualmente desenvolve um projecto de curadoria de exposições de artistas emergentes. Tem vindo a produzir diferentes tipos de textos, desde publicação de catálogos, textos de exposições a folhas de sala. Colaborou recentemente com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas 2023.

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