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As heranças da memória de Emily Wardill

A memória, ao contrário da História, é um passado em disputa por um futuro. O património imaterial com que nos identificamos e que procuramos preservar demonstram que tipo de sociedade desejamos construir, a nossa utopia. Mas o que acontece às utopias do passado que foram vencidas? Como é que compreendemos os nossos pais e a sua existência nesse passado se não nos podemos transformar neles? Ou podemos?

As relações entre memória individual e coletiva e o presente tecnológico são o centro do filme da nova exposição de Emily Wardill, a partir do entrelaçar de elementos naturais e domésticos, testemunhos do passado perante imagens do presente, regressos a imaginários antigos com softwares de inteligência artificial.

Um jovem raramente retratado, mas que parece ser a personagem que centra estes cruzamentos, procura compreender o passado da mãe, enquanto nos são mostradas filmagens de atores de videojogos. Como muitas relações intergeracionais, o amor filial parte de admiração, mas também de incompreensão. A desconexão entre tecnologia e passado recente são parte da fissura identitária da geração da pós-memória, isto é, os que cresceram com memórias familiares e sociais fortes, que impactaram a sua consciência, mas que não deixam de ser recordações em segunda mão. Esta curiosidade e angústia perpassa esta tentativa de reconstrução das últimas décadas do século XX.

Para recordar feitos míticos de resistência, desligados da experiência de quem já nasceu em democracia, o testemunho de Isabel do Carmo, membro das Brigadas Revolucionárias nos anos 70, reflete sobre o papel das mulheres no combate à ditadura, sobretudo como defensoras de casas na clandestinidade, mas também sobre a utopia e o marxismo. Se se fazem experiências com o vídeo, sobrepondo a narração da luta armada com a filmagem de uma implosão invertida, como que construindo uma paisagem, por vezes, é dado primazia ao testemunho falado, havendo momentos de escuridão ou de ruído branco. O ativismo passado, profundamente empenhado na busca de um mundo novo, contrasta com um discurso científico sobre estatística e medicina, que vai intercalando com a narrativa memorial, realçando a diferença entre um mundo de sonho e o que é do ramo do concreto. As imagens do quotidiano de chegadas e partidas de barcos para atravessar o Tejo para a capital são um aceno à paisagem portuguesa, neste caso lisboeta, realinhando discussões teóricas num contexto específico.

A representação do presente compreende, além de tecnologias recentes, filmes em que se associa a exploração partilhada da máquina e da mulher. Também em peças de teatro e dança antigas, o corpo feminino acompanha as reflexões sonoras. Centramo-nos, portanto, na experiência feminina nas várias temporalidades compreendidas na obra.

A experiência tecnológica toma, num outro momento, a voz de Alan Rickman, ator já falecido, que retoma a palavra, através da inteligência artificial. A máquina ressuscita um fragmento humano aparentemente irrecuperável e irrepetível: a voz. Se chama a atenção, por ser alguém facilmente reconhecível, este momento não é apresentado de forma moral, não havendo nem fascínio nem reprovação por este presente, mas antes a sua normalização. A contemporaneidade permite aos herdeiros recuperar a capacidade de produzir novo discurso para os que já não estão vivos, regressos temporários que alimentam a nostalgia de forma material.

Os cenários apresentados, de que realço apenas alguns, intercalados na sua cadência, surpreendem o espetador que não sabe nunca o que se segue.

A descontinuidade, diz-nos por sua vez o relato de Isabel do Carmo, é uma constante da História. A busca de padrões, contrapõe a voz que vai representando a ciência ao longo do filme, faz parte do instinto humano. Assim é, à medida que o filme se desenrola e o espetador procura encontrar o fio esquemático da obra. Os cortes temporais, espaciais, linguísticos, entre ficção científica e histórias, juventude e envelhecimento e mesmo entre som e imagem trazem uma coesão estética e conceptual, mas não deixam de ser descontinuidades que temos de articular numa linearidade.

Entre as preocupações do que foi e do que queremos que venha a ser, há tentativas de partilhas de identidade: com base no famoso slogan “Sous les pavês, la plage!”, a imagem da praia que se escondia por baixo do maio de ‘68 é recuperada para uma fusão de mãe e filho: a representação final do incontornável legado de memória deixado a cada um.

A exposição Night for Day de Emily Wardill faz parte do ciclo Pela Liberdade e não por Medo, programação dedicada à celebração dos 50 anos do 25 de abril, e está no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado até 23 de junho.

Inês Almeida (Lisboa, 1993) é licenciada em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, é mestre e doutoranda em História Contemporânea pela mesma instituição. Recentemente terminou a Pós-Graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do colectivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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