A Vaidade Praga-me de Isabel Cordovil na Galeria Municipal de Almada
Na primeira sala da exposição A Vaidade Praga-me, de Isabel Cordovil, um lustre assombroso surge tombado sobre o solo. O teto lavrado não aparece no lugar habitual, e tudo aparenta estar de pernas para o ar.
Há plintos vazios, velas que se consomem, asas pardas e primorosas, que simbolizam Ícaro na sua queda trágica e arrebatadora.
Ao longo da exposição, paira uma impressão de termo, de fronteira ou limiar. Algo está prestes a desmoronar, a evadir, a chegar ao fim, e, em simultâneo, a suceder-se como rescaldo de uma travessia.
Narrativas algo apologéticas, algo apocalípticas, sucedem-se. Algumas delas sugerem, até, como em Strange String, que o fim poderia ser também uma escolha – ou como diz Filipa Oliveira, curadora da exposição, uma “manipulação do tempo”.
A artista conduz-nos a uma reflexão sobre a ideia de fim, e, ao mesmo tempo, a um depois, envolto numa experiência de vazio. Filipa Oliveira explicita: “Na sua prática, e em particular nesta exposição, Isabel Cordovil especula sobre o depois do fim, o ‘after-party’. Entre o desejo, o sonho e a realidade, Cordovil aborda a ideia de um vazio (quase existencial) porque se calhar o fim já passou; vivemos, equivocados, num ‘after-party’, num pós-climax.”
O fim é, assim, tratado como uma passagem, um prenúncio, que se aproxima indubitavelmente para o seu termo, numa estado de espera inevitável e, por vezes, agonizante.
Por um lado, a artista reafirma esse fim, confirma esse passado, através dos seus mais singelos gestos. Por outro, parece apressar para um futuro, precipitar para uma ruptura.
Sobre uma parede é projetado o vídeo Pele. No mesmo, a artista rasga e arranca um papel de parede velho numa casa antiga. O mesmo gesto desencadeou uma intensa memória, de uma outra intervenção, realizada, aquando da Alternativa Zero, em 1977, num contexto muito diferente do preconizado pelo artista Isabel Cordovil. Ana Hatherly, há 47 anos, rasgava energicamente treze painéis, de grandes dimensões, cobertos de papel branco, e dispostos ao longo da histórica Galeria Quadrum. Durante a performance, a artista era filmada e fotografada a proceder ao rasgo das longas folhas, num gesto carregado de significado, endossado no espírito do 25 de Abril, após a revolução.
De algum modo, poderia dizer-se: a tragédia parece ser, também, e de certo modo, tratada na exposição de Isabel Cordovil, mesmo que indiretamente. Relembra a “contradição originária” mencionada por Deleuze.
Por um lado, encontramos uma exposição que inebria com as suas formas e beleza dos elementos. Será Apolo, com os seus dons do disfarce, a aliviar a gravidade, a decadência, e todas as formas de fim? Ou antes Dionísio, a tornar claro o sofrimento, a afirmar a vida?
(Na tragédia, e na enfatização da vida, lembramos também o pensamento de Beuys).
Desse modo, Apolo é como a figura que ameniza a dor e o sofrimento do indivíduo, através dos artifícios e tentativas que vai ardilosamente urdindo. Dionísio, por seu turno, é a figura que torna visível, e clara, a vida, assim como a dor: “Apolo triunfa do sofrimento do indivíduo pela glória radiosa com a qual ele envolve a eternidade da aparência”, ele apaga a dor (…). Dionísio, ao contrário, retoma à unidade primitiva, destrói o indivíduo, arrasta-o no grande naufrágio e absorve-o no ser original; assim ele reproduz a contradição como dor da individuação, mas resolve-as num prazer superior fazendo-nos participar da superabundância do ser único ou do querer universal.”[1]
A mostra está patente na Galeria Municipal de Almada até 16 de junho.
[1] Deleuze, G. (1976) Nietzsche e a Filosofia. Editora Rio – RJ.