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Rui Sanches, algumas obras na Galeria Municipal Trem – Manuel Baptista

Naquela que se apresentou como a última lição de Rui Sanches, a 24 de abril último, na Universidade do Algarve (onde lecionou durante 18 anos, desde 2006), o artista foi magistral. Foi magistral na aceção primeira da palavra: assumiu uma atitude professoral, de magister, e comprovou o seu mais profundo conhecimento acerca de uma história da arte: da sua história, da sua arte. Não se tome, porém, esta afirmação como denúncia de um egotismo redutor. Sanches narrou o seu percurso artístico, iniciado em 1977, quando, após abandonar o 3º ano do curso de Medicina, se dedicou irreversivelmente às artes visuais: primeiro no desenho e na pintura, logo depois na escultura. Fê-lo como quem se refere a uma terceira pessoa, como se fosse, sendo-o, o melhor conhecedor daquela obra, das suas motivações, dos momentos relevantes: foi um crítico de si, autor da sua própria biografia artística. O melhor ponto de vista é o que se tem de dentro para fora como se fosse de fora para dentro. De algum modo, a lição de T. S. Eliot (que o artista homenageou no verão de 2022, a assinalar o centenário da publicação de The Wasteland com uma bela exposição na Galeria Miguel Nabinho, em Lisboa) persiste em Rui Sanches – escreveu o poeta, em Quatro Quartetos (1943): “Não desistiremos de explorar / E o fim de toda a nossa exploração / Será chegarmos ao lugar de onde partimos / E conhecer o lugar pela primeira vez.”[1] Se a “primeira vez” é um lugar ainda desconhecido – o outro –, aquele de onde se parte é o lugar que se conhece – o eu –, convertido, pois, em desconhecido de si e objeto de incessante exploração.

É dessa oscilação entre estar dentro e estar fora, entre ver desde fora e simultaneamente desde dentro, como num aparato que permitisse ajustar de maneira automática a visão de um só sujeito sobre si mesmo e de um outro que fosse si mesmo, que falam as obras de Rui Sanches mostradas na Galeria Trem – Manuel Baptista, em Faro. Funciona a exposição como a amostra de uma antologia, em vez de ser uma mostra antológica, e dessa amostragem podem perceber-se algumas das constantes, ou inclinações temáticas do artista.

Sanches é, afirma-o Mirian Tavares na folha de sala, um “artista que ama, sobretudo as linhas”: são as linhas que ao mesmo tempo dividem e aliam espaços diferentes e múltiplos graus de definição, por exemplo, nas quatro peças (são desenhos-fotografia ou fotografias-desenho?) mostradas na parede oposta à da entrada e que, de acordo com o artista, serviram de ponto de partida para pensar a exposição. Cada uma está dividida a meio, ao alto; no espaço mais à esquerda predomina a imagem fotográfica; mais à direita, sobre fundo branco, o desenho, visivelmente divergente da fotografia, mas construído a partir dela, prolongando linhas da imagem que a câmara fixou – selecionando-as, destacando-as e, nisso, sublinhando traços (dos seixos do mar, de contornos de plantas) que a fotografia poderia ter minimizado no mais caótico conjunto do que se vê. As fotografias que serviram de base para a construção dessas peças foram fixadas numa praia algarvia, próximo de Sagres. Isso faz do conjunto de quatro uma espécie de peça site-specific, num sentido fora do tradicional: o site, o lugar, não se limita às paredes da galeria, mas dialoga com ela por identificar a região que motivou a obra. É um olhar para si, porque é do lugar onde ao longo dos últimos 18 anos Rui Sanches trabalhou no labor do ensino das Artes Visuais; mas é um olhar para fora de si, para a possibilidade historicamente artística da representação, da ligação ao ambiente ao seu redor.

Algumas obras de Rui Sanches abre ao visitante outras tantas portas para a globalidade de uma obra, para a arte num sentido global. Num dos depoimentos que registou no ateliê onde trabalhou durante várias décadas, em Lisboa, Sanches fala de outro estúdio onde começou a trabalhar há poucos anos: “Ao princípio, foi muito complicado […] o ateliê estava todo novo – este ateliê tem uma história de anos e anos, de restos de coisas, de lixo acumulado, de memórias que me suscitam outras coisas – eu vivo muito nessa continuidade, de não fazer ruturas no meu trabalho”[2]. Na Galeria Trem – Manuel Baptista, pode confirmar-se o seguimento que se constrói de uma obra a outra, a variação entre escultura e desenho, a viagem através do tempo, que levou o artista a iniciar na década de 1990 a modelação com barro, bronze e outros materiais, e que veio a contribuir, à entrada do milénio, para a composição de peças através da sobreposição de chapas de contraplacado de madeira, como as duas esculturas exibidas na galeria, como que a guardar as restantes obras exibidas nas paredes. Sanches refere-se em várias ocasiões ao passo inaugural da sua expressão na arte: releituras escultóricas da complexidade da pintura classicista de Nicolas Poussin. A arte escultórica não se desagrega da pintura bidimensional, mas prolonga-a, reinterpreta-a numa pulsão de atravessar para o espaço interior da pintura, como se cada quadro se transformasse num lugar de existência igual ao que lhe está fora. A tridimensionalidade das esculturas possibilita explorar a espacialidade: no princípio, Sanches quis andar à volta do que está a acontecer nos quadros de Poussin, procurando nessas visitas apagar a ideia de tempos, materiais e modos separados. É nesse deambular que continua, convidando o visitante a andar em volta das várias peças (das esculturas como dos desenhos, que estas como que projetam).

Sem centrar em si o discorrer do tempo que tem descrito na sua arte, Rui Sanches dá a ver como se articulam entre si peças que constituem a história da arte – a história da sua arte.

A exposição está patente na Galeria Municipal Trem – Manuel Baptista até 12 de junho de 2024.

 

[1] T. S. Eliot. (1943). Quarto Quartetos. Tradução e introdução de Gualter Cunha. Lisboa: Relógio d’Água, 2004, p. 93.
[2] https://www.youtube.com/watch?v=IQbYsJ9N-04

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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