Enquanto o espaço for de Pedro Calapez na Galeria Fernando Santos
Pintura, desenho, pintura-escultura e instalação; suportes de tela, de papel e alumínio; a presença da linha, de pinceladas e espatulados largos; o domínio de cores e texturas, mas também a sua ausência; bidimensionalidade e tridimensionalidade; a dominante abstrata, a ausência de figura humana e criação de ambientes: todos estes elementos perpassam a prática artística de Pedro Calapez (1953) e revelam-se no corpo das novas obras em exibição na Galeria Fernando Santos, no Porto.
Enquanto o espaço for desafia o espectador perante a obra do artista no desejo de provocar uma reação e pensamento sobre o que está para além do que é representado, sobre o que não é e o que não se está a ver, de perceber o espaço e o questionar. “O meu trabalho, em muitas vertentes, trabalha sobre o espaço, sobre a maneira como as pessoas vêm o espaço, sobre a distância, como é que se sentem dentro de um espaço, se estão mais perto do que o limita, se têm uma sensação de infinito (…), se esse espaço as perturba.”[1]
Inspirado num texto de Maria Zambrano, no livro O Homem e o Divino, sobre o nada e o não ser – enquanto dimensão da realidade que desafia o ser a manifestar-se plenamente –, o título da exposição indicia, segundo Calapez, “uma situação de possibilidade: enquanto tivermos espaço, podemos fazer coisas (…), enquanto ele existir, eu terei um lugar para trabalhar nesse espaço”[2], de onde as obras surgem revelando contrastes.
Ao longo da exposição, observamos a pintura a ser desenho, ou a transformar-se em objetos tridimensionais, e vemos o desenho a ser pintura e a estruturar-se como tal, numa relação de complementaridade e fusão entre práticas que nos falam de espaço. Constatamos de igual modo um lado sucessivo que o artista procura na apresentação, instalação e montagem dos diferentes trabalhos, encontrando na relação com o próprio espaço soluções que acentuam a lógica discursiva das obras. Na passagem de umas imagens para outras, por entre os espaços que ocupam e tirando proveito de contradições, observamos uma história que não termina, e em que a quebra de continuidade se transforma numa outra continuidade, conseguida pela importância que Calapez atribui à montagem da exposição, à criação do espaço para as diferentes obras – determinando o modo como são percecionadas pelo observador – e à elaboração de dinâmicas visuais. De destacar, por outro lado, a questão do lugar do olhar e do seu preenchimento pelo campo visual que os trabalhos possibilitam – numa lógica de visão de conjunto –, convocando e provocando diversos modos de ver, desafiando o espectador a diferentes sensações.
Em Enquanto o espaço for, transitamos livremente entre o espaço expositivo e o espaço das obras, cuja diversidade de suportes, técnicas e materiais motivam o nosso olhar, revelando-nos misturas e contrastes à medida que percorremos as diferentes séries em exibição. As possibilidades da abstração são-nos reveladas assim que entramos na galeria e observamos os seis trabalhos em técnica mista sobre papel pertencentes à série Uma forma incisiva sobre a realidade (2024). Tratam-se de trabalhos abstratos, mas que evocam formas que se desenvolvem nos contrastes e no modo como as cores são aplicadas no espaço, através de largas pinceladas e manchas que oscilam entre o visível e o invisível, entre o movimento e a subtileza, transparência e luminosidade. Num exercício de contemplação de cores, de formas e gestos, constatamos em alguns dos trabalhos da série o breve instante de junção entre manchas, de uma cor sobre a outra, e em todos eles a presença da linha, ora com intensidade e dinamismo ora como um apontamento. Da bidimensionalidade e imediatismo dos trabalhos sobre papel do conjunto anterior, passamos à frieza do alumínio enquanto suporte na configuração técnica e formal da pintura que, tomando conta do espaço, sai do plano da parede, transformando-se em objeto tridimensional, nas séries Do Lado de cá (2024) e Instável Permanência (A e B) (2023). Confrontando-nos com a presença de painéis estruturados arquitetonicamente, realizados industrialmente em alumínio, desenhados e cortados a laser, que simultaneamente revelam uma manualidade na aplicação da tinta, o artista explora questões de composição, volumetria e escala. Em ambas as séries, o nosso olhar deambula pela superfície frontal e pintada das caixas de alumínio, onde há distância em relação à parede, e a profundidade é trabalhada adquirindo protagonismo. Ocupando as paredes de maneiras diferentes, observamos a heterogeneidade das formas modulares que compõem as duas séries: planas e verticais, no caso de Instável Permanência; convexas e ordenadas paralelamente em duas filas horizontais, em Do lado de cá, num diálogo e confronto entre maneiras distintas de pintar representações abstratas, que, de acordo com o tipo de tinta utilizada – óleo no primeiro conjunto e acrílico no segundo –, criam um resultado visual diferente.
No mesmo espaço, deixamo-nos envolver pelas novas pinturas em acrílico de dimensões monumentais e pela sua capacidade de evocar lugares, como a imensidão do céu em Sonho a noite #03 (2024). Deslocamo-nos entre as pinturas e planos de cores que se movimentam para lá da superfície das telas, num jogo de cor-luz, de ritmo e vibração que se manifesta no espaço bidimensional. Visualizamos contrastes, percecionamos escalas e sentimos a sua espacialidade ao mesmo tempo que observamos, num contraponto a estas telas tradicionais e cheias, Recortado #08 (2024), trabalho pintado sobre alumínio, cuja própria janela da pintura se apresenta cheia de vazios e recortes, proporcionando um diálogo com o vazio da parede e pondo em discussão a superfície da pintura. Perante a obra, visualizamos através da janela da galeria uma composição que se distribui pela parede frontal do espaço Cubo, a instalação Autumn leaves (2024). A obra revela peças soltas que se libertaram dos suportes, se distorceram e foram presas individualmente à parede, criando uma situação de contornos irregulares. De destacar a ideia de fragmentação e a possibilidade de vermos a peça como um todo, o rompimento da ideia de simetria e a presença de um equilíbrio de cores/formas iminentes e de relações espaciais.
Num segundo momento expositivo, ocupando as paredes brancas de uma das salas de exposições, observamos desenhos que emanam de fundos igualmente brancos do papel. As linhas de prata que os percorrem evidenciam formas que o artista utiliza posteriormente em grandes dimensões, como esquemas de base para pinturas e desenhos. Na série intitulada Espaço (2024), a linha parece discorrer de forma involuntária e leve, aparecendo em alguns desenhos fechada, noutros aberta, sugerindo volumetrias, sínteses do que pode ser uma forma, um espaço, revelando-nos o mínimo possível, numa prática de desenho que mantém a gestualidade e caráter de suspensão.
No último momento da exposição, que se desenvolve na loja da galeria, somos recebidos pela verticalidade de duas pinturas em técnica mista sobre papel pertencentes à série Um corpo entre outros (2020). Obras de registo abstrato que desafiam o espaço, nelas observamos as manchas de cor impulsivas que cobrem as superfícies através de sobreposição de várias camadas, numa pintura que se basta a si própria, silenciosa, mas que desperta os nossos sentidos. Trabalhos que, não sendo gestuais, têm a dimensão do corpo e do gesto do artista na sua construção, evocando formas antropomórficas. Da tradição da pintura, somos conduzidos para uma outra metodologia explorada por Calapez: a criação de desenhos que começam a sua existência no computador e que se materializam em diferentes formatos e suportes, nomeadamente em impressão digital. A geração e manipulação de desenhos por computador – permitindo diferentes articulações com o espaço e redefinindo-o em função da perceção do espectador – são nos reveladas nos dois conjuntos de impressões a jato de tinta que encerram a exposição. No espaço superior da loja, habilmente disposto ao longo de duas paredes brancas que se intercetam, observamos os 13 trabalhos que compõem a série Espaços e Penumbras (2023), os gestos dos desenhos que criam espaços e que nos remetem para lugares de contrastes, de chiaroscuro, luz e sombra, densidade, obscuridade e desconhecido, numa procura de realidade. Contrastando com a penumbra e o universo cinzento e negro do conjunto anterior, somos seduzidos por Mundo Lateral C (políptico) (2024), obra de grandes dimensões (182 x 752cm) que nos obriga a um distanciamento para que a possamos contemplar na sua plenitude. Disposta em banda, os seis gigantes painéis verticais que compõem a obra revelam formas antropomórficas e irregulares que se transmitem sucessivamente pelo espaço uns dos outros, numa continuidade narrativa que se estende à paleta cromática, vibrante e alegre, dominada por tons de azul, verde, amarelo e vermelho alaranjado. Em frente ao políptico, terminamos o nosso percurso expositivo com Self #02 (2017), autorretrato do artista, cujo rosto em primeiro plano e de perfil, duplicado e como uma sombra negra, confronta a si mesmo, como quem se desafia. Sobre um fundo branco manipulado, registos coloridos que se assemelham a pequenas quadrículas percorrem o espaço, esse mesmo espaço que, enquanto for, enquanto existir, o artista continuará a trabalhar, emergindo-nos nele e habitando-o, numa procura constante pelo deslumbramento.
Enquanto o espaço for, de Pedro Calapez, está patente na Galeria Fernando Santos até 9 de junho de 2024.
[1] Conversa no atelier do artista. Dalila Pinto de Almeida e Pedro Calapez. Realização Igor Sterpin, 2024.
[2] Idem.