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Abril na RAMA – Residências Artísticas

Uma curta viagem de carro é suficiente para abandonarmos o caos cosmopolita e entrarmos num mundo rural. De Lisboa à Maceira e Alfeiria, situadas no concelho de Torres Vedras, são cerca de 50 km. Foi entre estas aldeias – tão próximas e, simultaneamente, tão distantes de Lisboa – que o artista Paulo Brighenti encontrou solo fértil para criar a RAMA, um programa de residências artísticas.

Este projeto, a funcionar ininterruptamente desde setembro de 2020, surgiu do seu desejo de proporcionar a outros artistas, curadores e investigadores um espaço dedicado à reflexão e ao processo criativo. “Não há apoio para o artista estar fechado no atelier a trabalhar e, por vezes, é exatamente isso que ele precisa”, observa Paulo Brighenti.

Sem solicitações exteriores nem a exigência de produzir uma exposição, a RAMA apresenta um modelo de residências distante de uma lógica de mercado que sobrevaloriza o resultado final. “Não há uma exigência para que os artistas produzam. Ou seja, eles não têm de sair daqui com um resultado em mãos. E isso retira tensão e ansiedade”, explica a curadora Ana Anacleto, responsável pelo acompanhamento dos artistas e pelo programa de tutorias.

Durante o decorrer das residências, o pensamento, a pesquisa, a experimentação e a partilha são trazidos para um primeiro plano. Aquilo que se propõe é, portanto, o desenvolvimento de um ecossistema colaborativo, onde a criação artística se cruza com a paisagem da região, a comunidade local e os seus saberes tradicionais.

Tal como os artistas residentes, Paulo Brighenti e Ana Anacleto experienciam uma contaminação do seu trabalho artístico. Neste contexto distante daquele que é o seu universo mais urbano, Ana Anacleto destaca a possibilidade de desenvolver uma prática curatorial diferente, menos ensaiada e formatada: “Estou muito habituada a fazer studio visits, onde sou eu que me desloco ao atelier do artista e há uma espécie de preparação. Aqui, as coisas correm de uma forma muito mais natural. É como se eu também fizesse parte da energia desse atelier”.

No passado mês de abril, a RAMA acolheu as artistas Anastasia Solopova, Ânia Pais e Madalena Bettencourt, vindas de diferentes cidades e de áreas artísticas muito distintas.

Nascida na Rússia, Anastasia Solopova vive em Berlim, onde estuda filologia clássica. Paralelamente à sua formação académica, tem trabalhado na área da ilustração e do design gráfico. “A minha vida divide-se em duas vertentes, uma científica e outra criativa. E elas afetam-se mutuamente. Sempre que inicio um novo projeto, sou influenciada pelos meus estudos anteriores,”, contou. O seu mais recente trabalho, a publicar no próximo ano, é um romance gráfico sobre o mito romano de Eco e Narciso. Trata-se de uma apropriação de um texto clássico que, à primeira vista, não parece pertencer ao domínio da banda desenhada. Neste romance, desenhado a preto e vermelho, a cor é pensada enquanto instrumento de tradução, capaz de produzir respostas emocionais e de inaugurar campos de tensão e novas dimensões.

A sua passagem pela RAMA ficou, em grande parte, marcada por uma tentativa de desvincular o seu estudo da cor do texto e das figuras mitológicas. “Quero compreender a relação entre a cor e a textura, a forma como a cor reage quando aplicada em diferentes materiais.”, explicou Anastasia. Em visita ao seu atelier na residência, encontrámos uma série de ensaios visuais – desenvolvidos exclusivamente a vermelho, sobre suportes planos – que refletem sobre a restrição e as possibilidades que dela advém.

Pela primeira vez em algum tempo, Anastasia Solopova teve oportunidade de se dedicar inteiramente à experimentação, acolhendo o erro e a repetição que lhe são inerentes: “Tenho experimentado e falhado muito. Como não tenho formação artística, há muitos materiais com os quais não sei trabalhar.” A troca de experiências com as restantes artistas foi fundamental para ultrapassar estas dificuldades. Instaurou-se desde cedo uma dinâmica de partilha entre as artistas residentes. Ânia Pais e Madalena Bettencourt, por exemplo, há muito desejavam partilhar um espaço e trabalhar em conjunto. O mês passado na RAMA foi a ocasião para concretizarem esse desejo.

Ânia Pais, natural da Covilhã, veio para a RAMA ao abrigo de um bolsa atribuída no âmbito do Prémio Arte Jovem Fundação Millennium BCP 2023. Estudou pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, mas a sua prática artística reflete principalmente uma ligação sensível com o corpo do tecido e o ato de o desconstruir. “Tenho trabalhado o tecido enquanto corpo, matéria semelhante à minha, como se fossemos idênticos. Com o mesmo cuidado e o mesmo grau de sensibilidade, tento encontrar a linguagem dele”, esclareceu. Esta ligação com o tecido, inicialmente inconsciente, é, na verdade, influência da terra onde cresceu, uma pequena aldeia onde a tradição de tecelagem permanece enraizada.

Durante o mês de abril, Ânia Pais trabalhou livremente com o tecido que trouxe de uma fábrica de reciclagem situada na Covilhã. Acima de tudo, procurou privar com as imagens mentais que dentro de si habitavam: dar-lhes tempo, conhecê-las e materializá-las, pouco a pouco. Deste processo de revelação, surgiram uma série de instalações que utilizam tecido desfiado, gesso e ramos de árvores. São trabalhos que espelham um contraste bruto entre o peso do gesso cru e a leveza do tecido, e que atentam sobre o efeito inexorável do tempo sobre a matéria.

“Eu pensava que vinha com um projeto delineado, mas, felizmente, esse projeto foi adiado. Isto permitiu que viesse [para a RAMA] sem nada definido e que me deixasse influenciar pelo território, pelas pessoas e pelas conexões que se formam”, explicou Ânia Pais. À sua semelhança, também Madalena Bettencourt chegou sem um plano traçado. Tinha somente como objetivo explorar a paisagem sonora da Maceira e Alfeiria, utilizando o objeto do Sino como base de trabalho.

Licenciada em Escultura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Madalena Bettencourt utilizou o Terceiro Prémio Jov’Arte da Bienal de Loures para se candidatar às residências artísticas RAMA. Trouxe consigo dois sinos, cedidos pela mais antiga fábrica de fundição de sinos em Portugal, e partindo deles, desenvolveu um trabalho artístico interdisciplinar.

Os seus dias na residência foram, sobretudo, ocupados com criação de um momento performático a que a população da aldeia intitulou de “Procissão dos Sinos”. Todos os dias, perto do pôr do sol, Madalena Bettencourt percorria a aldeia com um carrinho de mão, onde afixou os dois sinos. “Imediatamente, começam a contar-me histórias sobre os sinos da sua vida. E é exatamente aqui que se baseia o meu trabalho, nesta valorização quase inconsciente que as pessoas ganham do som e do quanto a paisagem sonora do sítio onde vivem diz sobre a sua própria realidade”, explicou.

Compreender uma paisagem sonora implica conhecer as pessoas que aí habitam e, neste sentido, o seu processo criativo não dispensou o contacto direto com a comunidade local. Durante abril, partilharam-se memórias e beberam-se cervejas no café da aldeia. E esta é, afinal, a proposta da RAMA, um projeto que, inserido num contexto rural, não poderia existir senão em comunhão com o que o rodeia.

Desde a inauguração das residências, passaram por Maceira e Alfeiria mais de 70 artistas nacionais e internacionais. Aqui, encontraram um ambiente onde os vizinhos se cumprimentam na rua, a carrinha do pão continua a percorrer as vielas da aldeia e os animais circulam livremente entre os quintais e os campos agrícolas. Foram poucos os que ficaram indiferentes ao desacelerar do tempo e ao contacto com este território. Na maioria dos casos, abriu-se uma porta com uma série de possibilidades criativas e a prática artística acabou, inevitavelmente, por refletir um trabalho de exploração territorial.

O trabalho desenvolvido pelas três artistas foi reunido na exposição colaborativa Everytime I walk by the donkey, apresentada no dia 27 de abril, na RAMA. Mais informações relativamente ao programa de residências artísticas encontram-se disponíveis no site da RAMA, e no artigo Um ano de RAMA, escrito por Joana Duarte para a Umbigo em 2022.

Maria Inês Mendes frequenta o mestrado em Crítica e Curadoria de Arte na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Em 2024, concluiu a licenciatura em Ciências da Comunicação na Universidade NOVA de Lisboa. Escreve regularmente sobre cinema no CINEblog, uma página promovida pelo Instituto de Filosofia da NOVA. Realizou um estágio curricular na Umbigo Magazine e, desde então, tem vindo a publicar regularmente. Colaborou recentemente com o BEAST - Festival de Cinema da Europa do Leste.

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