A Umbigo foi até Braga, a propósito da Bienal de Arte e Tecnologia INDEX, para uma conversa com os seus curadores
Sob o tema Coexistência, e no mesmo ano em que se celebra o 50.º aniversário do 25 de Abril, o INDEX volta a Braga, de 9 a 19 de maio, para a sua segunda edição, procurando estabelecer relações entre tecnologia, democracia e liberdade – “onde a primeira se revela simultaneamente alimento e tensão das duas últimas”. A bienal apresenta cerca de 50 propostas que se movimentam entre as áreas da Performance, Pensamento, Exposição e Mediação, habitando vários espaços pela cidade.
A direção artística está a cargo de Luís Fernandes (também responsável pelo programa performático), com a co-curadoria de Liliana Coutinho (Pensamento), Mariana Pestana (Exposição) e Sara Borges (Mediação), com quem falámos sobre esta segunda edição da bienal.
Antes de nos debruçarmos sobre esta nova e segunda edição do INDEX, gostaríamos de recuar um pouco ao início, à origem da Bienal. Sabendo que esta é a segunda edição, depois de uma primeira em 2022, quando e como surgiu o INDEX?
Luís Fernandes: O INDEX surge enquanto ideia aquando da candidatura de Braga à Rede de Cidades Criativas da Unesco para as Media Arts. Na sequência dessa candidatura, propusemo-nos criar um evento que de facto tivesse esta dimensão, de olhar para a relação entre arte e tecnologia a partir de um prisma diferente daquilo que já acontecia em alguns eventos na cidade, nomeadamente o Festival Semibreve, que o fazia a partir do ângulo específico da música exploratória e das artes digitais mais puras, digamos. E, portanto, sentíamos que havia aqui a falta de uma proposta programática na qual a tecnologia fosse central enquanto tema de discussão e que pudesse congregar diferentes tipos de práticas artísticas, nomeadamente as artes visuais, a discussão e o pensamento, e também a componente performativa. Nesse sentido, o INDEX surgiu com a primeira edição em 2022, sendo que teve uma edição beta no ano de 2019.
Existiu, portanto, uma espécie de versão beta, o que é muitíssimo interessante neste tipo de eventos, quer falar-nos desse processo (o processo de criação) e como se testa e “tateia” o público para uma Bienal?
Luís Fernandes: A ideia da edição beta surgiu porque sentimos que estávamos a propor um formato e uma área disciplinar menos usual, no contexto de uma cidade periférica, como Braga, na qual, apesar de existir uma propensão muito grande para propostas arrojadas, nunca tinha sido testado um evento com uma dimensão maior e que congregasse áreas disciplinares muito distintas, ou formas de apresentar trabalhos muito distintas, neste caso. Portanto, sempre sentimos que a construção de uma ideia de uma bienal poderia passar por uma edição teste – esta tal edição beta que decorreu em 2019 – e, no ano seguinte, em 2020, uma série de momentos de discussão e pensamento aos quais demos o nome da construção de um INDEX, que contaram com convidados muito distintos, como a já falecida Karen Oschenslager, que foi a diretora do Media Lab Prado, o João Ribas, o artista Marcel Weber ou a cineasta Salomé Lamas. Portanto, levámos a cabo uma série de momentos de discussão, nos quais trouxemos para o centro da conversa questões que normalmente estão associadas à relação entre arte e tecnologia, nomeadamente a predominância tecnológica, que às vezes ofusca alguma da validade ou interesse do ponto de vista artístico e estético. Enfim, uma série de discussões que foram determinantes para o próprio pensamento daquilo que foi depois a primeira edição em 2022. Foi importante também trabalhar, neste caso, com as minhas colegas Liliana Coutinho e Mariana Pestana, que trouxeram muito de valor àquilo que foi o pensamento sobre a estrutura e a proposta, e obviamente as escolhas programáticas em si.
Falemos dessa partilha. A curadoria da bienal é partilhada com a Sara Borges, a Liliana Coutinho e a Mariana Pestana, para além desse trabalho em equipa, em que se distingue a INDEX de outras Bienais de Arte em Portugal?
Mariana Pestana: O INDEX tem a particularidade de ser uma bienal que trata do cruzamento entre arte e tecnologia. E, nesse sentido, tem sempre um foco especial. Depois, também é uma bienal que tem três componentes com igual peso: uma componente expositiva, uma componente de performance e uma componente de pensamento. E esses três eixos são trabalhados sempre em conjunto, a partir de uma linha temática que é definida pelos curadores à partida. Isso é muito interessante também: o diálogo entre esses vários modos da bienal. E, por fim, é uma bienal que também se espalha pela cidade. E é muito interessante porque ela não acontece num espaço museológico, mas em vários espaços, desde casas históricas, ao Theatro Circo, ao Mosteiro de Tibães, que são espaços que têm as suas próprias histórias, ambiências e atmosferas e que também dialogam com as peças de diferentes formas e permitem às pessoas circular pela cidade.
Talvez esta pergunta se relacione muito com a anterior, trazendo também a Liliana Coutinho para a nossa conversa. Lê-se na sinopse da apresentação da bienal, que os seus eixos programáticos oscilam entre Performance, Pensamento, Exposição e Mediação… Como se organizam propostas num programa que se quer eclético?
Liliana Coutinho: Com diálogo e alinhamento de programações que, simultaneamente, têm a sua autonomia. Há artistas e convidados que participam em todos os eixos de programação, outros que não. Há ressonâncias que foram provocadas entre vários momentos – e outras que, como acontece em todo o processo criativo de uma curadoria, surgiram de forma quase inesperada no processo de tecer as relações (temáticas, estéticas e de disposição nos espaços e no tempo desta Bienal) entre as várias propostas artísticas e de pensamento.
Braga é uma cidade jovem, cidade criativa da UNESCO, será Capital Portuguesa da Cultura em 2025, sucedendo a Aveiro (também a norte do país)… de que modo estes fatores influenciaram o desenho da Bienal e por consequência a programação?
Luís Fernandes: Eu diria que, precisamente pelo perfil da cidade, o facto de ser uma cidade jovem que conjuga, de certa forma, esta ideia quase pré-concebida de que é uma cidade conservadora – que é, obviamente –, mas também uma cidade com um pendor tecnológico e de inovação considerável. E aqui, quando falo em tecnologia e inovação, não falo apenas do ponto de vista artístico, mas muito em áreas que concerne especificamente à tecnologia, como a Universidade do Minho, que tem um grande pendor para as tecnologias da informação, ou o Laboratório Ibérico de Nanotecnologia, na investigação. Sempre sentimos que havia uma dualidade entre uma cidade que é, tradicional e historicamente, conservadora, e, ao mesmo tempo, uma cidade que está um pouco na linha da frente em algumas dimensões. Também, sendo uma cidade jovem, e que tem revelado um pendor crescente para dinâmicas culturais, facto espelhado na candidatura a Capital Europeia da Cultura, e que agora será a Capital Portuguesa da Cultura. Estas dimensões influenciaram não diria o desenho da Bienal, mas a sua própria existência. Não tanto a programação em si, porque decorre de temas que nós vamos identificando e escolhendo para cada edição. Mas, na sua génese, este contexto foi fundamental.
E como se reflete no público ou nos públicos? Como tem sido esse trabalho (que bem sabemos é muito complexo)?
Luís Fernandes: A construção de um público, ou esta capacidade de atrair públicos para propostas que não são tão imediatas como outras, foi algo que se começou a fazer antes do INDEX. E aqui volto a trazer à baila alguns exemplos, como o Festival Semibreve, que desde 2011 tem colocado Braga no panorama internacional e, no fundo, demonstrado que propostas mais arriscadas, se forem implementadas de forma correta, podem ter sucesso e estabelecer-se, mesmo numa cidade que, à partida, é menos propensa à inovação no domínio da arte do que as grandes capitais. Mas também estruturas como o Gnration, que tem trabalhado continuamente, desde 2014, o cruzamento entre arte e tecnologia e a nova criação no domínio da música e da arte sonora. Portanto, ao longo destes 12 anos, o que sentimos que tem acontecido é que este público tem sido paulatinamente construído e angariado, digamos. É claro que isto é um trabalho contínuo, não se esgota, não há garantias, nunca temos garantias de sucesso. Acho que envolve sempre um trabalho e uma leitura constantes para cimentar esta posição que queremos manter, de uma cidade que olha para a frente e que promove conteúdos artísticos disruptivos e de qualidade, e que traz questões que merecem ser discutidas a partir do ponto de vista e do lugar da arte.
Numa altura em que se discute muito o papel da tecnologia na transformação do mercado laboral – Indústria 4.0 ou Quarta Revolução industrial, o AI; assistimos também em simultâneo a um retorno/aproximação à produção com técnicas manuais ou tradicionais. De que modo o INDEX absorve este duplo sentido de técnica? E por outro lado, como se reflete na vossa programação a “tecnologia”?
Mariana Pestana: Esta Bienal de Arte e Tecnologia é uma bienal também de pensamento crítico e, portanto, ela procura levantar questões acerca da tecnologia, dos avanços tecnológicos no mundo contemporâneo. E, nesse sentido, este cruzamento entre arte e tecnologia tem sempre esse propósito crítico. Nesta edição em particular, em que se celebra o 50º aniversário da Revolução de Abril, nós procurámos que o programa se focasse em questões que têm a ver com esse momento político e, mais concretamente, sobre a questão da cidadania.
No projeto expositivo, procurámos fazer um programa que trata, por exemplo, da forma como certas ideologias transformaram e transformam territórios, nomeadamente através do Arquivo Diamang no Museu Nogueira da Silva, ou do projeto da Ilha da Ascensão do Jonas Staal, que é um território que foi também terraformado, um território objeto de geoengenharia e de transformação tecnológica. Ou, por exemplo, no caso de outra artista que está em mostra no Mosteiro de Tibães, a Kyriaki Goni, em que ela mostra como é que a expansão no espaço, como é que estas grandes empresas e os programas espaciais também, nacionais, imaginam a exploração de territórios e de matérias. Há por um lado esta ideia de como a tecnologia está ao serviço de certas ideologias e que efeitos provoca nos territórios, nas pessoas, nas sociedades, sempre a partir desta perspetiva da coexistência, da ideia de que nós não vivemos em isolamento, mas vivemos sempre em interdependências com outras pessoas, outros seres e matérias.
Portanto, por um lado, como é que a tecnologia está ao serviço de certas ideologias; por outro lado, como é que, através da tecnologia, nós podemos expandir aquilo que é um projeto de cidadania. E esta é uma ideia fundamental do Projeto Expositivo, esta ideia de uma cidadania em expansão, que a cidadania não é um dado adquirido, não é uma definição rígida, mas é qualquer coisa que está em transformação. Nós aqui no Programa Expositivo também mostramos como, através da tecnologia e da arte, podemos imaginar e reimaginar a nossa relação com outras inteligências, inteligências de outros seres.
Nesse sentido, vale a pena ver o projeto dos Superflex e dos KWY, também no Mosteiro de Tibães, mas no Jardim, que é uma proposta de uma arquitetura interespécies, mas também como podemos colaborar e pensar e coexistir em articulação com outras inteligências, por exemplo artificiais, como é o caso. Um projeto que nos faz pensar muito sobre isso, como é que nós colaboramos com inteligências artificiais, é o projeto do Néstor Pestana, que está no espaço da Reitoria. Nesse espaço, há também uma obra muito interessante da Luisa Tormenta, que tem a ver com o espaço digital como um espaço de arquivo e de memória, e da forma como o nosso corpo se pode relacionar com essa esfera dos dados e do digital. A ideia central nesta edição e no Programa Expositivo, bem mais em concreto, é esta ideia de expansão da cidadania, como um projeto que deve continuar a desenvolver-se, a incluir mais pessoas, mas também, no futuro, outras inteligências. E nesta lógica da coexistência, da forma como podemos coexistir no futuro.
O tema desta nova edição é “Coexistência”, uma coexistência natural e humana, social e também política (como referiram o aniversário do 25 de Abril está bem presente). Como se traduzem estes temas na programação?
Liliana Coutinho: A programação desta edição do INDEX procurou, de uma forma fluída, exprimir este ecossistema de relações que nos impele hoje em dia a ter de considerar, quando falamos de coexistência, todas essas dimensões referidas na pergunta. Sendo uma bienal de arte e tecnologia e estando presente de forma tão persuasiva nas nossas vidas, com impactos tanto ao nível dos nossos modos de sociabilização quando ao nível ambiental, importou-nos olhar para o trabalho de artistas e de pensadores que focam estes diferentes planos. A relação com as comemorações do 25 de Abril surge neste contexto de um modo prospectivo, olhando para os desafios presentes e relacionados com um futuro próximo, que a democracia enfrenta hoje em dia. Penso em particular nas práticas de disseminação de fake news, deep fakes, na escolha de informação baseada em potenciais números de clickbaits, mas também na forma como esta pode ser aliada de processos de sociabilização política, por exemplo, mais transparente e participativa, entre outros. Neste aspeto, refletimos sobre as condições de produção e de que o uso das tecnologias impõe. Que processos de literacias tecnológicas estão a ser, ou não, implementados? Interessou-nos também considerar a questão da cidadania de um ponto de vista ecologicamente alargado, convidando para o debate o conceito forjado em solo indígena da América Latina de Florestania, ou a questão das relações interespécies – naturais e artificiais.
A Bienal acontece de 9 a 19 de maio em vários espaços pela cidade – um convite também a revisitar Braga. Uma pergunta ingrata, mas o que podemos destacar na programação? Ou a pergunta feita de outro modo: o que é que não podemos mesmo deixar passar?
Liliana Coutinho: Claro que a nossa vontade é dizer: tudo! Até porque o programa está desenhado de um modo não demasiado intensivo, onde é fácil articular visitas às exposições com conferências e performances. Deixamos, no entanto, algumas sugestões. No que diz respeito às exposições, no mosteiro de Tibães, três esculturas novas do coletivo dinamarquês Superflex, em colaboração com o atelier de arquitectura português KWY, dão continuidade à investigação que têm desenvolvido em torno da ideia de arquitetura inter espécies. Ainda no mosteiro, Kyriaki Goni mostra uma série de tapeçarias sobre exploração de minério espacial, uma sobre volfrâmio e a importância desta matéria no contexto de Portugal. No que diz respeito às conversas e conferências, se o primeiro fim de semana traz-nos debates que focam as questões das relações interespécies, do whistleblowing e do impacto de tecnologias sonoras e de guerra na nossa existência, com artistas e pensadores de referência, o programa online que ocorre durante a semana faz uma transição entre este primeiro momento e o segundo fim de semana, no qual pretendemos abrir perspetivas sobre o nosso entendimento do que pode ser a tecnologia e as suas potencialidades no âmbito de práticas de coexistência. Saliento, por isso, as intervenções de Ellen Lima Wassu, que trará um entendimento da tecnologia a partir da perspetiva dos contextos indígenas brasileiros, o Sénamé Koffi Abgbodjinou, arquiteto, antropólogo e ativista tecnológico do Togo, que fechará o programa com uma conferência intitulada Coexistência Planetária.
Por fim, uma pergunta-curiosidade. A INDEX é uma bienal física, que, embora aconteça em Portugal, abarca um público nacional e também internacional. Para edições futuras, pode o espaço virtual (online) ganhar um maior palco performativo para a Bienal?
Mariana Pestana: Neste momento, o INDEX tem uma presença física na cidade e também digital, e já noutras edições houve encomendas que são especificamente digitais. De qualquer modo, mesmo este ano, há workshops, conversas e, sobretudo, programas que acontecem na área do pensamento que estão disponíveis online, para além de que todas as obras serão registadas em fotografia e vídeo e estarão depois também disponíveis para se poderem ver em arquivo.