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Resilient Gardens, de Marisa Benjamim

Em A Vegetariana, Han Kang conta a história de uma mulher sul coreana que se rebela contra o patriarcado, a sociedade e a vida. Tolhida pela domesticidade a que a cultura coreana a obriga, de boa esposa e boa mãe, a personagem principal começa por uma pequena revolução: torna-se vegetariana numa paisagem familiar que se delicia com a carne.

Num outro momento, emancipada e longe da família e do marido, dessa fusão e confusão que substitui o sujeito e constrói outras identidades alienígenas em nós, a mulher tece uma amizade amorosa e sexual com um artista. A segunda pequena revolução acontece num desses encontros amorosos: pede ao artista que a pinte, nua, com motivos florais – pétalas, folhas, talos, ramos preenchem a sua pele, dos pés ao rosto. A personagem é a emanação de uma senciência vegetal, vagamente performativa, vagamente fictícia, mas não menos intensa – ali, sobre o chão, inerte, como o tronco de uma árvore centenária inamovível.

A terceira revolução – e a mais trágica – corresponde a uma volição de tal forma estoica e de tal forma absurda – patológica, diriam alguns –, que só alguém que compreende a dissolução do mundo, o colapso da vida e a verdade escatológica da existência poderia apreender ou intuir. A mulher torna-se um vegetal – ou, como na patologia clínica, entrega-se voluntariamente a um estado vegetativo: deixa de comer, de beber, refugia-se em escapadelas à floresta, e ali fica, debaixo de uma árvore, encostada a ela, sentido o murmurar das folhas, tornando-se uma extensão humana de um ser celuloso, fitológico, colando-se ao modo de ser e sentir dessa árvore. Podia morrer debaixo dela, ser tragada pelo solo e subsolo, encoberta pelas raízes de plantas, que a envolvem depois numa rede nevrálgica de micélios, fungos e líquenes. Fezes e urina, sangue e fluxos uterinos serão uma dádiva divina para essa árvore, mais divina que um deus, mais divina que Deus. A sua vida humana e animal entregar-se-ia ao zero da natureza cósmica.

(Foi assim mesmo? Terei inventado ou reinterpretado as palavras da autora, dando-lhe um desfecho que me agradasse mais? Não importa. Soa bem. O que interessa é a profunda ferida verde, bolorenta e fúngica que abriu em mim. Um rasgo vulvário no meu peito, cheio de plantas e ramos e vermes e folhas mortas.)

Há algo em Resilient Gardens, de Marisa Benjamim, que recorda este romance, mesmo não tendo nada a ver com ele diretamente. De repente, é possível, depois deste pequeno preâmbulo literário, imaginar o fantasma de uma mulher a que Kang deu voz através do olhar alheio. Há simplesmente um olhar sobre a Natureza que por vezes, nas suas contradições e complexidades, põe em confronto olhares, experiências e hiperobjetos (tão vastos, tão grandes e prolongados no tempo que só a ciência e os dados a vislumbram) que suscitam debate e a envolvência de uma comunidade para esse efeito.

De facto, a prática de Benjamim está intimamente ligada ao local e às gentes que o habitam. Há uma conexão direta com uma cultura e uma sociedade na tentativa de buscar um objeto, uma construção, uma ideia para a produção artística. O devaneio peripatético pelas florestas, pelos campos e pelas cidades servem de catalisadores criativos, analisando a flora, experimentando a tua tatilidade, sabor, saber e fisionomia.

O território que Benjamim trabalhou para Resilient Gardens, no âmbito de uma residência com o projeto VNBM, foi Viseu – os seus parques, ruas históricas, jardins e matas. Os amores-perfeitos vibravam nos canteiros, um velho carvalho tombado pelas forças da natureza e pela doença, as faias e as outras espécies arbóreas da região, o musgo, os afloramentos graníticos – tudo isto foi trazido para a exposição, quer do ponto de vista cromático ou da gravura, quer do ponto de vista escultórico ou botânico. Mas talvez seja a sensualidade mais diáfana – a fragrância e o sabor – que mais impacto causará nos espectadores. Nesta decomposição do território vegetal, a comunidade é convidada e refletir sobre o seu património natural, sobre as memórias que o sabor – esse proustiano fenómeno – desencadeia em cada um, a cada borrifadela, esguicho ou aspiração, e o que faz e conjuga um momento de comunhão de experiências.

E dentro da ecologia que a Resilient Gardens convoca, toda uma economia de saberes, negócios e empreendedores se junta num mesmo rapport, que junta restauração e padarias numa performance degustativa que a terra – aquela terra – dá. Tudo é entendido não já sob o ponto de vista antropológico, mas vegetal. Esta não é uma visão romantizada da Natureza. É antes uma que compreende uma cosmopolítica plena de tensões, fértil, mas também letal; deliciosa, mas também venenosa. A terra é um capital. Desde a Mesopotâmia. Aqui não existe esse entendimento, antes um outro, por ventura mais local e de pequenas transformações. Não somos nós contra a Natureza; não somos nós dentro da Natureza. Somos nós com a Natureza.

Nos troncos, os anéis são registos da vida da árvore, da meteorologia, do tempo. São objetos, agora mortos, que testemunharam uma vida mais vasta e inacessível que a dos humanos. A sua matéria grava em si o avançar do Antropoceno, do aceleracionismo moderno, do aquecimento global. Se há pouco falávamos dos dados que formavam os hiperobjetos, aqui temos vários desses dados – estenógrafos de uma realidade que os olhos não veem e o tato não sente: círculos e círculos, hipnóticos, dificilmente contáveis, cuja forma e contabilidade se perdem nesse oximoro de um infinito finito ou vice-versa. No silêncio vegetal a que a Natureza as votou – a mesma que Kang votou à personagem e heroína feminina –, as árvores registam a dor que nos ultrapassa.

É difícil saber qual das várias aceções de Natureza Marisa Benjamim e a curadora Sandra Oliveira consideram como a mais próxima da razão ou da realidade – se a Natureza Dionisíaca, se a Natureza antropocénica e mesopotâmica, se a Natureza romântica. Talvez essa nem sequer deva esta ser uma preocupação no campo da arte e da estética, onde há espaço para a contradição, a especulação delirante e a inocência. Sabemos apenas do profundo respeito e mutualidade que habitam os gestos e ações presentes nesta exposição, a seriedade da investigação que Benjamim lhe dedicou e a sua abertura a desconhecidos que lhe emprestaram saberes, mais ou menos científicos, mais ou menos ancestrais.

Resilient Gardens, de Marisa Bejamim, está patente no espaço VNBM | Arte Contemporânea, até 30 de junho, em Viseu. Curadoria de Sandra Oliveira e assistência científica de Paulo Barracosa.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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