Entrevista com o Coletivo Guarda Rios, a propósito do Observatório dos Rios
Nascido em outubro de 2019, Guarda Rios, coletivo de investigação e criação artística em torno dos territórios ribeirinhos do Minho ao Guadiana, tem-se afirmado no território nacional através de ações e processos artísticos participativos que promovem um contacto direto com a água e a natureza e estimulam a refletir sobre a importância dos ecossistemas fluviais. Numa conexão constante entre arte e ciência, reunindo artistas e investigadores de áreas diversas e promovendo o envolvimento das comunidades locais, o coletivo tem implementado, desde 2023 e pelas diferentes hidrogeografias portuguesas, o projeto multidisciplinar Observatório dos Rios, que conta com o apoio da Umbigo Magazine e integra o programa Atos, uma iniciativa do Teatro Nacional D. Maria II em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian. A propósito das diretrizes, objetivos, desafios e impactos do projeto Observatório dos Rios, falámos com os criadores e coordenadores do coletivo, Francisco Pinheiro e Nuno Barroso, na entrevista que se segue.
Guarda Rios assume-se enquanto coletivo de investigação e criação artística em torno dos territórios ribeirinhos, do Minho ao Guadiana, através de ações participativas e de celebração. Porquê a escolha dos rios e ecossistemas ribeirinhos?
A partir dos rios podemos perceber a nossa relação com a natureza, com os animais, com a água e os modos de estar e de fazer que orientam a nossa sociedade. Um rio é de facto um ecossistema, pois ele é a linha de água que serpenteia pela montanha abaixo, mas também é as margens e os leitos de cheia que de quando a quando alagam. Portanto um rio não só corre em direção ao mar, como se expande para os lados, para cima e para baixo do solo, retendo água, humidade e todo um conjunto de bactérias que beneficiam plantas, organismos e toda uma cadeia de vida, incluindo nós humanos. Os rios e as massas de água doce não chegam a 3% da água total que existe no planeta e é onde está concentrada a maior biodiversidade do planeta. Portanto, tudo o que temos feito e fazemos relativamente a um rio (mesmo que seja ignorá-lo), é muito relevante na perspetiva das nossas prioridades enquanto sociedade.
A propósito do projeto Observatório dos Rios, afirmam que encontraram neste modelo “depois de vários anos de mapeamento e pesquisa, de norte a sul, do litoral, ao interior, uma forma de desfragmentar e tornar acessíveis conhecimentos técnicos e científicos que fomos acumulando, mantendo, no entanto, o projecto permeável às diferentes hidrogeografias que atravessa.” Quais as estratégias, linhas orientadoras e o que privilegia este modelo e projeto multidisciplinar e de que modo tem sido implementado no território?
O Observatório dos Rios consiste num conjunto de instalações, jogos e pequenas dramaturgias que implicam o envolvimento e ação dos participantes. Este modelo desconstrói a ideia do espectador passivo, democratiza a participação e torna o ambiente formal para facilitar a participação. O facto de ser um projeto pensado essencialmente para o exterior, o ar livre, a margem dos rios, procura também eliminar barreiras que existem no acesso à cultura. A permeabilidade às diferentes hidrogeografias, engloba também as pessoas, os conteúdos e os gestos que elas trazem e que muitas vezes possibilitam um novo entendimento sobre um determinado território ou região hidrográfica. O Observatório dos Rios vai acumulando estas camadas, dissemina-as e correlaciona-as à medida que vai passando pelos diferentes territórios.
Assistimos neste projecto a uma forte articulação com entidades locais – municípios, museus, espaços de arte, centros científicos e escolas. Como avaliam a adesão e recetividade dos municípios ao Observatório dos Rios e de que modo exploram e promovem a interação e inclusão da participação do público/ comunidades locais?
A maior parte dos municípios estão sensíveis aos tópicos inerentes ao Observatório dos Rios e responde positivamente à nossa proposta. Para chegar às pessoas, o projeto divide-se em três eixos principais: o trabalho com público infanto-juvenil através de oficinas de criação, a organização de um passeio ou encontro no rio com a população, ONGs e outros grupos locais e por último de uma apresentação pública do Observatório dos Rios aberta à comunidade. Em todas estas atividades há espaço para a participação, conversa e lazer. O Observatório dos Rios é apenas um gatilho para a interação, a troca, o convívio.
Desde a sua inauguração, em março de 2023, foram criados Observatório dos Rios em Santa Maria da Feira (rio Cáster); Ourém (rio Nabão); Tavira (foz do Gilão e ria Formosa) e Castelo Branco (rio Ponsul). Atravessando diferentes hidrogeografias, e considerando as especificidades de cada território, quais as principais diferenças e/ou similitudes que encontraram entre os vários rios e os seus ecossistemas e entre modelos de gestão e preservação dos mesmos?
Aquilo que consideramos transversal a todo o território é um certo desligamento destas entidades que são os rios. Ouvimos muitas narrativas nostálgicas de como os rios eram importantes e muito mais presentes nas vidas das pessoas, de como eram espaços relevantes para uma certa economia doméstica, para o lazer e divertimento, espaços de aventura. Outro aspeto também transversal são as grandes mudanças paisagísticas e ecológicas talvez dos últimos 50/60 anos, que correspondem à construção das grandes barragens, introdução de espécies exóticas para a pesca desportiva e abandono da agricultura de subsistência. O afastamento das pessoas dos rios e o modelo de progresso do século XX andam de mãos dadas.
A propósito das problemáticas ligadas aos rios, ecossistemas e gestão da água no planeta, que modelos sugerem, tendo em conta o trabalho de pesquisa e de campo já realizado com o Observatório dos Rios?
É preciso trabalharmos mais colaborativamente, escutar o território, as pessoas que vivem nos lugares, fazendo com que a gestão do território seja um processo mais participativo. Por exemplo, as pessoas sentem-se distantes das APAS e dos SEPNAS que passam de SUVS pelos lugares, e nalguns lugares sentimos por parte da população um certo ódio aos Parques Naturais, porque não se sentem parte da equação, não são ouvidas e não lhes são confiadas qualquer responsabilidade.
Temos também de remover muitas barreiras obsoletas e ter a coragem política de não construir mais barragens de grande dimensão, porque os nossos rios têm falta de conectividade. Quando um rio não corre, ele basicamente deixa de ser um rio, ou seja, gera muito menos oxigénio, a biodiversidade reduz-se drasticamente, passa a ser uma massa de água com uma grande concentração de químicos pouco desejáveis que advém da agropecuária, agricultura, indústrias e etc, e então toda a sua capacidade depuradora, metabólica deixa de funcionar, sendo um problema que compromete a disponibilidade de água potável no planeta. É urgente, por isso mesmo, apoiarmos projetos de restauro dos nossos rios, como os Rios Livres da GEOTA.
Como avaliam o impacto que o Observatório dos Rios poderá ter na relação da comunidade com o meio natural em termos futuros?
Parece óbvio falar de rios numa altura em que globalmente são prementes as questões do clima e do desgaste ecológico do planeta. No entanto, quando trazemos este tema para junto das pessoas, e até para nós próprios que produzimos o projeto, somos sempre surpreendidos com novas questões, aprendizagens e possíveis formas de entendimento daquilo que nos rodeia. Isto tem um efeito transformador na perceção e na cultura dominante.
Já está definido o próximo Observatório dos Rios? Onde e quando será?
Sim. O próximo OR será em Torres Vedras, entre 1 a 10 de junho. Depois, vamos para Constância, entre 24 de junho a 8 de julho, continuando a partir de Setembro em Serpa, Ermesinde e em Mação. Entre 14 a 19 de maio, vamos ter um primeiro contacto com a população de Idanha-a-Velha para uma futura apresentação no Pela Terra – Encontro de Arte e Ecologia em 2025.