A memória não é uma espécie em vias de extinção: Abril Vermelho no CAV e os 50 anos do 25 de Abril
“Um artista é um cidadão com um megafone.”[1]
Disse Miguel von Hafe Pérez que a voz do artista, materializada na sua obra, é aquela que melhor responde às nossas representações mais ou menos limitadas do mundo. O quê, o como, o quando são determinações que apenas a cada autor dizem respeito, diversidade a qual importa destacar. “É ao autor que cabe a responsabilidade de viver no seu tempo sem dele ser refém”. Daí se reitera a sua contemporaneidade, a qual encontra eco na reflexão de Giorgio Agemben: “Aquele que não pertence ao seu tempo, que é deveras contemporâneo, é alguém que não coincide perfeitamente com ele nem se adapta às suas exigências, e é por isso, nesse sentido, inactual (…)”. É precisamente por essa singular relação com o tempo, manifestada pelo distanciamento e o anacronismo, que alguém consegue perceber e captar o seu tempo melhor do que ninguém. Uma voz dizia no cortejo de celebração do 25 de Abril que a revolução não se fez, faz-se. Certamente um alguém com essa visão extrapolada do aqui e agora, que não se acalma com a comemoração pontual desse algo que é luta permanente, ou não fosse o futuro escrito em jeito de processo diário que é trabalho árduo, muitas vezes inconsciente, mas absolutamente necessário.
Durante muito tempo, acreditei que a cada conceito atribuímos um sentido graças à existência do seu oposto. Se sabemos o que é liberdade é porque simplesmente o mundo nunca viveu uma realidade sem a guerra, a luta, a desigualdade e a subordinação. Hoje não sei se é bem assim. Recuso-me a acreditar que liberdade se resume a anti-prisão. E daí até libertinagem vai um grande salto de fé. Não esgotemos um conceito na sua definição, por termos que se aproximam e antagonizam. Liberdade é um cravo na espingarda e o grito de um povo, filho da pobreza, do patriarcado e do analfabetismo, que a cada 25 de Abril se junta, perpetuando a herança que lhe coube – a de mover quimeras, e de agarrar a paz, o pão, e a habitação. É isso que sei: indagar outros modos de pensar, para além daqueles que se pensam, ou outras formas de agir, para além daquelas que se performam, são indispensáveis para continuar a testemunhar e a refletir o mundo. E daí expandi-lo. Revolução é todos os dias.
Foi com a (boa) desculpa deste mês que o Centro de Artes Visuais (CAV), em Coimbra, inaugurou Abril Vermelho, uma exposição onde 21 artistas nacionais e internacionais se debruçam sobre os 50 anos de liberdade e de democracia em Portugal, através de uma leitura profusa da data. Esta caminhada, por entre as memórias do passado colonial e dos tempos do regime ditatorial salazarista, reflete visões de artistas, na sua maioria nascidos já após 1974, que se posicionam quer por um sério combate às políticas vigentes, quer por uma atitude irónica e sarcástica. Na verdade, para além daquilo que podemos considerar ser um confronto pela arte com um acervo iconográfico da história da Revolução, vemo-nos perante uma amostra de valores e preocupações, mais ou menos mascaradas dos seus autores; sendo este gesto artístico reflexo ele mesmo da liberdade conquistada, e à qual aqui se desafia a responder. Resgata-se, portanto, uma temporada histórica marcante até ao presente, ou não fosse um artista um cidadão com um megafone, e não fosse a arte, mundo. Interligados, a arte é extensão do artista, e este, uma extensão do mundo onde se insere. Porque cada um de nós é a memória que tem e a responsabilidade que assume. E se sem memória não existimos, um artista leva muito a sério a responsabilidade; talvez sem ela não mereçamos existir.
Veja-se a frontalidade das imagens recolhidas por Pedro Medeiros, da prisão política portuguesa do Tarrafal; o híbrido entre a estória biográfica e a história político-social vivida em Moçambique, no período anterior e posterior ao 25 de Abril, pelas mãos de Manuel Santos Maia, através de uma projeção que é trajeto de (re)memoração do eu-coletivo, partindo do pessoal para aludir a uma experiência comum que atravessou o processo da (des)colonização portuguesa em África; ou as reflexões de Nuno Nunes-Ferreira sobre memória, luta, símbolos e factualidade, arquitetando um arquivo de símbolos e chavões em Detalhes, a partir de imagens icónicas da revolução extraídas de jornais e ampliadas/focadas intencionalmente, as quais dialogam com Duas Margens, onde a ponte lisboeta, representada em dois conjuntos de postais, se desdobra no seu antes (Ponte Salazar) e depois de abril de 1974 (Ponte 25 de Abril).
Porém, se algumas obras e os seus autores reavivam documentos e arquivos do passado, outros reconstroem esses eventos à luz de uma perspetiva que tanto prima pela a metáfora mais sóbria, como pela mais irónica. A Luta Contínua, de João Vasco Paiva, vê num conjunto de máscaras de gás em suspenso não apenas uma alegoria da guerra, como de um país incapaz de respirar. Miguel Palma e o seu permanente questionamento às narrativas da modernidade, através de uma pulsão construtiva e do uso da repetição excessiva, neste caso da tenda militar, problematiza os vários anos de guerra colonial. Nas obras João Ponte Diniz “Pilha Eléctrica”, campeão de mínimos amadores boxe 1943 e Sting e Portugueses na Europa, João Tabarra toma como ponto de partida a euforia da integração de Portugal na União Europeia, para satirizar as imagens simbólicas e os aspetos marcantes da história de Portugal antigo e do país moderno, valendo-se, para isso, da imagem do homem mundano e do herói. Vanda Madureira iluminou, na sua performance, mensagens a não esquecer; Patrícia Almeida, em colaboração com David-Alexandre Guéniot, aviva o descontentamento social dos anos da troika; Pedro Pousada diz-nos várias coisas sobre REDVOLUTION, por meio de um reino com muito de banda desenhada. Ancorado na folha de papel e na certeza da tinta permanente, partindo de várias referências, sejam da arte ou do mundo em geral, o artista interroga-nos enquanto nos proporciona uma ilustração estendida da história do país, entre a caricatura e a crítica político-social.
Alicerçada num título com tanto de factual, quanto de figurativo, a exposição comporta, pela cor vermelho, toda a carga simbólica de um passado de revoluções e ideologias. Evocação predominante do socialismo e do comunismo, vermelho é uma história farta, de origens na idade média e raízes nas políticas radicais, signo incontestável de luta contra a opressão. Celebrar o 25 de Abril é, para o seu curador, não um capricho, mas forma de “criar uma ponte entre a liberdade conquistada e o fantasma de um país atrasado, isolado, arrastado para uma guerra colonial insustentável”. A fusão entre o orgulho da conquista vitoriosa e a amargura do reconhecimento dos erros passados, algo que a memória não pode, nem deve, olvidar.
Sim, porque a memória é traiçoeira, capaz de evadir-se. Hoje exalta-se a memória como um fenómeno coletivo, quisemos fazer memória de tudo, e de repente, convertemo-la num elefante de várias cabeças focadas na tradição, nos interesses e num contexto comunitário acrítico, depressa alienada do passado ou deturpada nas suas veracidades. De onde perigosamente se diluem factos históricos, enfraquecem detalhes e subjugam eventos cronológicos a modos de recordação inevitavelmente subjetivos, para não dizer passionais. A memória não é um bem negociável, disse-o Miguel Von Hafe Pérez: é um exercício crítico quotidiano. É por isso imperioso preservá-la, não defraudada pelos lugares-comuns, as ideias-feitas e as verdades mortas. Abril Vermelho manifesta-se como semente da cultura da memória, contra a incultura do esquecimento e a desconstrução da democracia.
Mira-se Maps of Complicities de Daniel Barroca e vê-se um atlas de linhas que fundem os olhares, ou as cumplicidades, de jovens soldados, expondo as sombras destas imagens para lá do seu aparente momento de ócio – ecos de memória e gestos pertencentes a um domínio intemporal da experiência coletiva. Na obra de Délio Jasse, o consagrado elo entre fotografia e memória entrelaça a imagem de arquivo com pistas de outras vidas, carimbos, passaportes e álbuns de família, para recuperar lembranças e construir no presente as vozes abafadas no passado, as quais refletem sobre a cultura e a política africana pós-colonial. Juntam-se, ainda, os nomes de Ângela Ferreira, António Olaio, Filipe Marques, Isabel Ribeiro, Luisa Jacinto, Manuel Vieira, Osias André, Pedro Portugal, Roger Paulino e Ruben Santiago, para, no seu conjunto, materializarem uma prática interdisciplinar que investiga as qualidades percetivas e performativas da obra de arte, por entre um exercício de memória coletiva e de arrepio. A história não saiu de nós.
Inserida no ciclo a vida, apesar dela, Abril Vermelho está patente até 16 de junho, partindo do passado, não tão passado, para refletir um presente, que será sempre presente. Tal como esse alguém dizia “Revolução não se fez, faz-se”, até aqui nenhuma novidade: aquilo que eram ideais a serem defendidos e proclamados nessa altura, são os mesmos de agora. A memória não é uma espécie em vias de extinção. Contamos, pois, que estes ideias sejam, também, os de amanhã.
[1] No filme Liv Ullmann: uma estrada menos percorrida.