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Soundwalk Collective e Patti Smith: notas de bússola

Patti Smith e os Soundwalk Collective (Stephan Crasneanscki e Simone Merli) quiseram prestar homenagem aos poetas Arthur Rimbaud, Antonin Arnaud e René Daumal com Perfect Vision, projeto em três álbuns sucessivos: Mummer Love, The Peyote Dance e Peradam, respetivamente. Partindo de uma devoção comum de Crasneanscki e Smith, o facto dos três poetas terem feito cada um uma viagem a uma montanha tornou mais e mais a geografia um ponto de partida. Os Soundwalk Collective percorreram, então, cada um destes itinerários, procurando recuperar este imaginário espacial.

A base destes álbuns foi construída a partir do som recolhido num planalto abissínio (Etiópia), na serra Tarahumara (México) e na montanha Devi (Índia), a que vem acrescer música e uma performance poética de Smith. Esta viagem espiritual tinha entre os seus objetivos provocar uma imersão no local, um momento de eremitismo, uma compreensão sem interferência, com alguns elementos da presença humana. O foco em três montanhas pressupunha a solidão e o isolamento absolutos.

Este formato musical gerou a posteriori uma exposição, Evidence, para o Centro Georges Pompidou, agora adaptada ao Centro Cultural de Belém, focada nos espaços visitados. Destes trouxe-se terra, madeira, pedra e objetos que conferissem materialidade à experiência. Em moldes sobretudo sonoros – são 59 os momentos auditivos mapeados na sala, a que acedemos através de auscultadores –, estão presentes barulhos como o crepitar de uma fogueira, o toque de um sino, o correr da água, um espanta-espíritos que habita o espaço, e o vento em primazia: a força de um elemento anterior à linguagem. Há discursos em línguas desconhecidas que tornam a sua incompreensibilidade um exercício de contemplação, dito, não registado pela escrita. Ocasionalmente, Patti Smith lê versos ao nosso ouvido. Não há cor na paisagem e as fotografias projetadas são a preto e branco, mantendo a proximidade com a aridez.

Optou-se por uma luz reduzida, conferindo importância aos cantos da sala, às telas e aos pequenos bancos; ao som e ao silêncio.

Em cada nicho da exposição há uma nova instalação sonora, correspondendo à mudança de geografia que se opera na nossa deslocação pela sala. Cria-se, assim, uma experiência individual do visitante que pressupõe ela própria o isolamento, a introspeção, à medida que os três sítios se fundem entre os nossos passos. A proposta parece ser experienciar sítios inóspitos sem assombrações, espaços a que não temos acesso, mas com que sonhamos: aquilo a que Stephan Crasneanscki chama os “mundos despertos”.

Além da materialidade, do som e da imagem, há uma única parede, a parede de investigação, com registo de locais e caras – não só da viagem, mas do arquivo dos artistas, que encaixou nas evocações estéticas trazidas pelo espaço, pela criação, pela fusão da voz, do instrumental e do ruído. São quase duas centenas de obras, entre as quais fotografias, desenhos e retratos, que traduzem numa outra linguagem este itinerário artístico.

Há, ainda, uma inovação face à exposição em Paris: a mesa de viagem de Mário Cesariny, oferecida aos artistas e que estes tomaram como um “amigo” da exposição, encosta-se a esta parede única. Afinal, o duo considera esta uma exposição em constante transformação, em relação com o espaço onde ressuscita. O cruzamento entre a anglofonia, a francofonia e a lusofonia flui em consonância com as ambições do projeto.

A mudança de médium, de álbum para exposição, não destoa, antes funde a obra e o seu trajeto. A partilha do processo traz consigo os sítios na mala. O infinito cruza-se com o íntimo. Sobra a criação original, os álbuns que sintetizam a experiência.

A exposição Evidence dos Soundwalk Collective e Patti Smith, com curadoria de Chloé Siganos e Jean-Max Colard, está presente no MAC/CCB até 15 de setembro de 2024.

Inês Almeida (Lisboa, 1993) é licenciada em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, é mestre e doutoranda em História Contemporânea pela mesma instituição. Recentemente terminou a Pós-Graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do colectivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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