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De Josèfa Ntjam a Daniel Arsham, as naturezas várias no Fotografiska Nova Iorque

Ao longo do Stadsgården, o cais na costa do Mar Báltico em Estocolmo, desponta um comprido edifício de tijolos vermelhos, construído em 1906. Originalmente uma alfândega, o Fotografiska nasce em 2010 como um museu polivalente, que, embora sempre fiel à sua veia fotográfica, compreende a imagem como um suporte expandido para o pensamento social, político e artístico. Quase uma década depois, abre o seu primeiro espaço fora do continente europeu – numa construção histórica ainda mais antiga, datada do século XIX, mas no centro de Manhattan, a poucos quarteirões do Empire State Building. Lá, encontram-se patentes as exposições individuais Futuristic Ancestry: Warping Matter and Space-time(s), de Josèfa Ntjam, PHASES, de Daniel Arsham, e a coletiva Human / Nature: Encountering Ourselves in the Natural World.

Do último ao primeiro piso, o percurso se inicia com a primeira mostra a solo da jovem artista francesa nos Estados Unidos. Só este ano, para além da sua estreia norte-americana, Josèfa Ntjam já se apresentara em Paris, no âmbito da prestigiosa LVMH Métiers d’Art, com une cosmogonie d’océans, e, agora, na Accademia di Belle Arti di Venezia, parte do programa paralelo oficial da 60.ª Biennale di Venezia, com swell of spæc(i)es. Alinhado aos esforços transfeministas que valorizam a ficção científica como espaço possível para a liberdade e a justiça intra– e interespécies, o seu trabalho multidisciplinar convida-nos a descobrir paisagens e personagens fantásticas – algumas do passado; algumas do futuro; algumas, quiçá, que já estão entre nós. Inspirada tanto pelas imagens de Mami Uata – uma deidade aquática cultuada em diversas culturas pela África Ocidental, Central, Austral e por populações diaspóricas nas Caraíbas e Américas – como de figuras históricas da luta pela independência camaronesa e nigeriana, a artista cria uma atmosfera metafísica que conecta os reinos da imaginação, da história e da biologia como se se tratassem de um só mundo. E, na verdade, o são.

Aqui, o meio fotográfico é escusa para uma exposição que conjuga montagens mirabolantes, grandes painéis, esculturas flutuantes e vídeo-instalações imersivas. O ambiente acena a uma certa estética Y2K, hoje de aparência nostálgica e algo amadora, mas que também apela ao fluxo vibrante e infinito de possibilidades que se anunciava com a aceleração tecnológica do início do milénio. Com as mesmas cores cintilantes e efeitos visuais rudimentares, Ntjam resgata referências de um – muitos, de facto – passado para redesenhar um futuro imperfeito – onde há, ainda, ira, indignação e motivos para resistir –, mas governado por novas identidades e simbioses. Os caminhos para tal revolução são também indicados pela artista, como quem dobra o tempo-espaço para nos revelar um segredo do além: para insubordinação, recomenda-se 3 frutos de Orangelicot, 20 gramas de tumérico seco, 6 folhas de Patienle, 10 gramas de raízes de Sceau de Antela, 4 flores de Saturna e 10 gramas de casca de Shabazz. Aquecer todos os ingredientes até ferver em lume brando. Tomar em pequenas doses durante uma semana. Os elementos que ainda nos são desconhecidos, hoje, terão de ser encontrados, cultivados ou fabricados.

Sem dúvida, a perspicácia e a exuberância da investigação artística de Futuristic Ancestry: Warping Matter and Space-time(s) ditam o tom para o restante da visita. No piso abaixo, Human / Nature: Encountering Ourselves in the Natural World reúne imagens e instalações fotográficas de 14 artistas internacionais, dentre os quais o mexicano Alfredo de Stefano, a britânica Cig Harvey e a chinesa Yan Wang Preston, recentemente galardoada com o Prémio de Responsabilidade Ambiental pela The Royal Photographic Society. Entre o horizonte afrofuturista que avistávamos, com Ntjam – e que nos absorvia na sua saturação desafiante –, e a beleza límpida e minuciosa – quase estéril, em alguns casos – da mostra coletiva, contrastam duas perspetivas sobre a natureza. Se, no primeiro, os corpos são híbridos, metamórficos, praticamente desumanizados, na segunda, parte-se do pressuposto de que há – embora não devesse haver – uma rotura radical entre o terreno da humanidade e o terreno do natural. Assim, o que se observa, em muitas das obras, é uma representação destes ainda como existências não-contaminadas, artificialmente distanciadas. Excetuam-se, particularmente, os trabalhos da dupla Inka & Niclas e Brendan Pattengale, que logram retirar “natureza” e “humano” dos seus campos de significado estritos, restabelecendo uma relação mágica, densa e complexa entre ambos.

Finalmente, é inevitável uma leitura também ecológica do trabalho de Daniel Arsham, escultor que apresenta no Fotografiska New York, pela primeira vez, a sua prática fotográfica. As imagens que produz – embora não tivesse a intenção de as exibir como objetos artísticos, ao princípio – refletem, sem dúvida, o seu traço autoral, sobretudo na tentativa de registar um tempo que ultrapassa a sorte humana. Ao apontar a câmara ora para ambientes urbanos, ora para ambientes verdes; ora para detalhes singulares de espaços interiores, ora para a vastidão impessoal dos céus; ora para pessoas, ora para estátuas; a natureza em PHASES é a melancolia: a experiência da grandeza, a permanência da ruína.

Ao fim e ao cabo, as naturezas são várias. Cabe invenção, cabe estranheza, e cabe, é claro, tristeza. Coabitar é preciso.

Em ordem de fecho, Human / Nature: Encountering Ourselves in the Natural World está patente no Fotografiska Nova Iorque até 19 de maio; Futuristic Ancestry: Warping Matter and Space-time(s), de Josèfa Ntjam, até 25 de maio; e PHASES, de Daniel Arsham, até 13 de junho.

Laila Algaves Nuñez (Rio de Janeiro, 1997) é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para a imaginação e o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH), colabora profissionalmente com iniciativas e instituições nacionais e internacionais, como a BoCA - Biennial of Contemporary Arts, o Futurama - Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo e, enquanto assistente de produção e criação de Rita Natálio, a Terra Batida.

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