(+) Diálogo #23: Pedro Cabrita Paiva x Assembleia da República
Tudo se perde na voragem do tempo aceleracionista, hiperprodutivo, autofágico, e na univocidade do #SISTEMA macropolítico, que é político sem convicção e político sem sinceridade.
Mas que #SISTEMA é este, afinal? É tudo aquilo que nos ultrapassa: a mão direita e esquerda de Deus; o neoliberalismo, com a sua inteligência corporativa, ou o que agora designamos de Inteligência Artificial; a política transnacional, global e globalizada, incapaz de resolver os problemas do bairro; o capitalismo seguro das instituições de arte, que seguem acefalamente um espírito do tempo sem o criticarem; museus que cristalizaram políticas voltadas para as massas globais e perderam o contacto com o local, a arte e a história da arte; e, finalmente, aquela máquina tão bem oleada, tão maquiavélica, tão eficiente e eficaz – dizem – e que lhe chamam burocracia: uma estrutura sem cabeça, sem responsáveis diretos, processual, hierarquizada, autoprotegida, um governo sem nomes, sem rostos, impessoal.
Ora, é nesta situação que muitos artistas se encontram: num modo de fazer quase predeterminado, num modo de atuação perante poderes obscuros, qual crivo de escritório que aprova ou desaprova as grandes temáticas da atualidade. Entre a neoliberalização do sistema da arte e a burocracia, jazem os loucos, os zombies, os artistas perdidos e desesperados, presos a uma precariedade vampírica, a contratos laborais transitórios, que não asseguram estabilidade nem para as suas carreiras artísticas, nem para as suas vidas, e servem de mão-de-obra barata e precária a muita desta indústria da arte que controla a história e as tendências. Presos, enfim, a um Tempo sem tempo, a um tempo cronológico, mas raramente kairológico.
É importante, pois, neste momento tão oportuno, que ergue cravos em riste, perguntar se a arte e o ato de criar são verdadeiramente, essencialmente, livres. Se os artistas são livres de pensar, livres de ociar (todas as classes deveriam ter este direito – não é, nem deve ser, um exclusivo das classes mais altas), livres de não terem de sucumbir aos sorvedouros de procedimentos do #SISTEMA.
As obras que Pedro Cabrita Paiva desenvolveu para o Diálogo #23, per se, em nada dizem respeito a esta conversa. E, no entanto, estão profundamente arreigadas nesta longa discussão de artistas que se batem, debatem e esbatem contra a burocracia, o peso institucional e as condições laborais com que iniciam as suas carreiras.
Vejamos: cada objeto parece irradiar uma luz dourada pelo toque. Os objetos são mundanos, engenhos meramente utilitários afetos ao seu manuseamento diário, por várias mãos, por muitas mãos. São objetos que manifestam silenciosamente uma comunidade diária, numa atividade azafamada de corredores e bastidores, guardando a transpiração de cada frustração, o óleo de cada indivíduo que o usa. Entregues ao abandono, tornar-se-iam verdes – aquele verdete do bronze esquecido, da escultura sem atenção, exposta a intempéries e aos ventos do desprezo. Mas ei-los luzentes, luminosos, trazidos à luz pela arte e pelos legados idos de um Iluminismo que se perde de eleição em eleição. Ei-los aqui reproduzidos – agora absurdos e inúteis –, elevados a uma categoria que nunca foi a deles: porque estavam numa porta, junto ao chão, sobre a pia do lavatório, pejados de cinza de esperas ansiadas, frustradas, cansadas. Já não se tratam de meros objetos. São outra coisa. Eventualmente mais pura, mais abstrata: a reprodução transformadora da coisicidade mundana e engenhosa – a Arte. O toque dá luz, ilumina. Como estátuas de adoração, enchem-nos de esperança e dessa coisa estranha, bizarra, difícil de compreender e explicar – porque há sempre uma doutrina e ortodoxia por detrás –, a que chamamos fé.
De facto, tendo em conta o lugar de onde estas reproduções provêm, esse ato de fazer brilhar, de dar luz – fiat lux! –, tem uma ligação histórica e simbólica com esse período histórico a que designámos Iluminismo – no que teve de positivo (positivista), no que teve de rigoroso (cientifista), mas também no que teve de expansivo, desde então, se ainda o considerarmos como um projeto em marcha ou válido nos dias de hoje (porque um outro movimento, o do Iluminismo das Trevas, nos assalta), aceitando a discórdia, a renovação, a reiteração e a abertura a realidades que não conseguem ser reduzidas, encaixadas, categorizadas ou taxonomizadas. Cada toque é um reluzir dessas luzes que se acenderam no século XVIII, através do trabalho dos que, nesta casa da palavra, investem o seu pensamento. As peças continuarão a reluzir conquanto a razão persistir. Ao invés, entregar-se-ão à oxidação verde, perdendo a fulgência do polimento, sucumbindo às trevas, à fragmentação, à atomização, ao aceleracionismo – ao contrário do que as construiu.
De volta às Luzes, ou às Trevas das Luzes, em 2021 Pedro Cabrita Paiva inaugurava a obra Cauda: um tubo de luz que pendia do teto, fletido em arco. Era como que uma luz que murchava em direção ao chão, sem vigor. Era cómico, à primeira vista: uma luz deprimida. Era sério, à segunda, quando a Luz se verga à corrupção das suas conquistas e deixa uma sombra de crises perpétuas. O pendor trágico desta Cauda, que se instala nas retaguardas anais de todos os corpos, dá luz a esse ânus solar. Poder-se-ia, pois, entender Cauda como um raio surrealista, distópico e especulativo, um oráculo luminoso relutante, que se abate com a visão absurda dos filhos do #SISTEMA.
Ora, a leitura que o artista faz é radicalmente diferente desta: é um jogo plástico de objetos comuns deformáveis, sem perderem, no entanto, a sua origem, a sua função. O curador nem sempre acerta – a logorreia. E aí está o prazer – para não dizer beleza (um termo que carrega um certo desuso e uma aura romântica) da sua obra: o de frustrar expectativas, inverter olhares, procurar novas plasticidades para um objeto e nele se perder.
Trabalhar-se com a Assembleia da República é submeter-se a um processo negocial e burocrático kafkiano, na verdadeira aceção da palavra, que consome tempo, espoleta ansiedades e cria um rol de desassossegos impeditivos e insofismáveis. E a arte, como o artista refere no texto que acompanha o projeto na Umbigo #88, requer “tédio” (que, tragicamente, muitos artistas – se não mesmo a maior parte deles – não têm o luxo de o poder experienciar). Na verdade, a já referida Cauda nasce no tédio trazido pelo isolamento causado pela pandemia da COVID-19. Pedro Cabrita Paiva passou dias a olhar para a luz do teto… até que a dobrou. E a Sala dos Passos Perdidos nada mais é do que um palimpsesto de aborrecimento, de esperas vazias e de tempos mortos ou a morrer.
Há objetos artísticos que caem inesperadamente como blocos de gelo no inverno e que têm de esperar pela primavera para que se deem a ver.
Arriscar a escolha de um artista cuja prática artística radica numa poética absurdista – quase patafísica –, que parece estar fora deste tempo – ou, em alternativa, que reclama um tempo e um espaço que são só seus – é, de facto, incorrer num risco, tendo em conta a instituição. Mas a arte é uma aventura sem compromissos, uma transgressão constante que se insurge, uma e outra vez, contra a náusea do #SISTEMA e respetiva segurança: dos museus, das galerias, das revistas (desta revista), dos curadores (deste curador), das instituições, das políticas, da burocracia. A arte é um risco.
É curioso o quão subversiva a obra Fod@-?€! (2020), de Pedro Cabrita Paiva, é. Para além de qualquer leitura superficial ou juvenil, há muito nesta obra que converge com a implicância da arte para com o #SISTEMA da arte, sem que esse tenha sido o propósito ou o conceito por detrás da obra – uma pastilha elástica peganhosa colada ao sapato e ao chão. É um desabafo, uma irritação, mas também uma libertação de qualquer convenção. Imagine-se esta peça na passadeira vermelha dos Passos Perdidos. Fod@-?€! é a emanação de uma condição simultaneamente transgressora e ridícula, um quê de niilismo, um quê de crise e de crítica – ou seja, a forma em formação da própria contemporaneidade.
O mesmo espírito transgressor perpassa para o Diálogo #23, quando é exigida ao artista uma autorização superior para poder reproduzir – ou sequer fotografar – as maçanetas, as fechaduras, os puxadores, as torneiras e os cinzeiros da Assembleia da República. O ato criativo teria de passar pelo crivo do Sr. Secretário-Geral para que se fizesse acontecer. Ora, na arte não há licenças, não há autorizações superiores, não pode haver nada que condicione o que deveria ser a sua absoluta liberdade, sobretudo quando estão em causa maçanetas, fechaduras, puxadores, torneiras e cinzeiros – objetos anónimos, espúrias criações utilitárias sem um valor que não o mais quotidiano.
Mas, na espera inquietante da burocracia, incerto de saber ou não se teria autorização, o projeto Diálogos foi-se fazendo, ciente da sua insurreição contra um absurdismo labiríntico. Os objetos foram-se moldando ilicitamente – bootlegs que contornam infrações, direitos; que se apropriam, reproduzem, à revelia de um Estado-Corporação, sem aprovação superior para as fotografias em que se baseiam os objetos; sem compreensão, nem explanação possível, no momento, sobre o quão patético seria pedir consentimento para tal coisa. Não seria possível, muito provavelmente, reproduzir o busto da República para um projeto artístico; mas é possível, sim – como o artista descobriu nas investigações para este projeto –, mercantilizá-lo pela módica quantia de 70€, tal como t-shirts e outras mercancias banais, a exclamarem “♥︎ Democracy”. O #SISTEMA esgota o significado, esgota as palavras.
Estes bootlegs, estas cópias ainda não autorizadas, excedem, contudo, a mera reprodução. Transformam-se e transcendem os seus referentes, para entrarem num circuito de contrafação de símbolos e signos históricos, espaciais, objetuais e temporais. Cabrita Paiva quebra uma ilusão de poder e valor. A cópia terá mais valor que o original, a reprodução tosca ou defeituosa, com erros, é absolvida pelo espírito irreverente que ganha. O ilegítimo é arte. A luminosidade do toque é fingida. A luz que ilumina os objetos pelo toque de gerações é artificializada, simulada – o que dá uma leitura muito mais complexa aos simples fenómenos antropológicos dos objetos de adoração. A arte, como saudoso poeta dizia, é fingimento.
A realidade, contudo, é mais complexa.
Isto não era uma batalha contra o #SISTEMA.
Sujeitámo-nos a ele.
A prova é que aguardámos a autorização e que a aceitámos, com todo o conforto de não vir a receber intimações futuras.
Mas ao fazê-lo, desmascaramos o funcionamento da casa por excelência de um país. Que não é pública, nem privada. Que não é jardim livre, nem cárcere. É um lugar estranho, inclassificável, insondável, como os meandros do #SISTEMA que a construiu e para o qual se faz e debate todos os dias. E, todavia, a arte persevera, por entre carimbos, emails, dossiês, muros, desencantamentos. O germe criador vibra sempre, com mais ou menos liberdade, mais ou menos condicionamentos. Desobedece, resiste, insiste.
A irritação com estes procedimentos foi tão só um rastilho quimérico para o verdadeiro trabalho artístico: o plástico, que brinca com a matéria e os referenciais, que joga um jogo difícil à partida, o abandona, e o transforma noutra outra coisa qualquer; porque este não é um ativismo político. Isso fica para as ruas, os boletins de voto e o protesto comunitário. O que importa aqui é o potencial criador da mundanidade, do banal, do artifício da arte, que manipula e desconstrói tudo o que nos rodeia. Tudo é uma narrativa aberta, nestes objetos – uma sequência já solta do seu lugar de origem, pronta para outras instalações e conversas sem termo, que interrogam a autoria, o utilitário, a arte prenhe de vida e de humor e de tragédia.
Em 2016, sobre a retrospetiva de Fischli and Weiss, Jerry Saltz relembrava a “divina instabilidade destes [dois] artistas” e assemelhava-os a uns “alquimistas Illuminati da vida moderna”, deixando que “a arte se desbobinasse, seguindo processos e materiais para fins lógicos e ilógicos, sem nunca se preocuparem em fazer sentido ou em elaborar histórias externas elaboradas”. E remata, citando algo que o duo outrora dissera: “retirando a sua função […] os objetos deixam de ser escravizados por ela […] e isso abre espaço para que se faça qualquer outra coisa”.
Esta liberdade é a mesma que Cabrita Paiva procura no seu trabalho, pleno de tensões, incertezas poéticas, que surpreendem e interpelam. Por mais leituras que haja, há sempre um diálogo plástico, compositivo, de fechaduras que não abrem, luzes que não iluminam, de peças que se formam e deformam, num equilíbrio periclitante entre espírito e matéria. Um diálogo, enfim, perpétuo, imperfeito, inacabado, que desafia um #SISTEMA que se quer perfeito, sem pontas soltas, fechado.