Azimute, de Pedro Vaz, na Casa Azul – entre a paisagem em que estamos e a que temos dentro
Azimute é uma distância angular medida horizontalmente em graus, quadrantes e sentido horário, que separa o meridiano do lugar do observador e o plano do círculo vertical que passa pelo ponto observado. Usado em áreas como a topografia e cartografia, o significado da sua origem etimológica árabe confere-lhe um sentido filosófico e poético de caminho, direção, rumo. A escolha deste termo para dar título ao projeto em que se insere a exposição Azimute, de Pedro Vaz, na Casa Azul da EMERGE (Torres Vedras), indicia a duplicidade da experiência imersiva característica do percurso estético do artista-caminhante, cujo processo de trabalho “alterna entre a imersão na natureza por meio de expedições e a vivência das qualidades abstratas que a memória possui ao trabalhar no atelier”[1].
De facto, como é confirmado por aquele e pelos curadores das duas exposições que integram o projeto – Sérgio Fazenda Rodrigues (Galeria 111, 2018) e João Silvério (Casa Azul, a decorrer) –, nos respetivos textos curatoriais e na recente conversa a três, o percurso pelas duas salas da última galeria – passando pelo mapa, pelas pinturas suspensas, a caixa de paisagem e o vídeo (isolado) Indagar – encerra (ou abre-se para) binómios contrastantes: o rigor científico das coordenadas no mapa e o lado magnético e transcendental de deixar-se guiar, numa parte do trajeto, por varas de vedor a fim de encontrar uma nascente de água; os elementos naturais concretos vs. as qualidades abstratas das pinturas que evocam memórias de pontos de vista da montanha; a fragilidade das telas vs. a força da montanha; o artificial (produzido pelo Homem) vs. o puro e natural; mas também o saber académico vs. o saber empírico, que, neste contexto, se associam a uma dualidade entre a experiência empírica da caminhada e a objetividade material das obras expostas.
Reminiscente da medida em quadrantes e no sentido dos ponteiros do relógio inerente ao azimute, e metáfora do percurso artístico e pela natureza em diversas geografias do mundo de Pedro Vaz, existe uma lenda na cosmologia budista, contada por uma personagem budista no Nepal, no filme As Oito Montanhas – realizado por Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch, e baseado no livro de Paolo Cognetti –, segundo a qual o mundo é formado por oito montanhas e oito mares, tendo no centro o grande Monte Sumeru, que representa o centro de todos os universos físicos, metafísicos e espirituais. Essa personagem questiona: “quem aprendeu mais? Aquele que percorreu as oito montanhas e os oito mares ou aquele que chegou ao topo do Monte Sumeru?”. No filme, o Sumeru simboliza a montanha que está no início da nossa história e a que regressamos após aventurarmo-nos por outros mundos (ou montanhas), a que se traduz no autoconhecimento, identidade e evolução interior e, por isso, a mais difícil de subir. A escolha da Serra da Estrela, simultaneamente forte e familiar, como protagonista do projeto Azimute, após a realização de diversas expedições e projetos fora de Portugal pelo artista-montanhista, simboliza, de certa forma, um regresso a casa, a procura de caminhos revisitados que, ainda assim, encerram sempre pontos inexplorados, como a sua própria paisagem interior.
Essa mundivisão de Pedro Vaz, a itinerância entre a cidade (Lisboa, onde vive e tem o seu atelier) e a natureza, assim como um certo determinismo cultural, moldam a perceção da paisagem natural, sendo relevantes para esta os desenvolvimentos na filosofia da paisagem e a sua relação com a arte. Adriana Serrão aponta para uma inversão do paradigma mimético clássico e reversão para uma subordinação da natureza à arte, entre os séculos XVIII e XIX, num contexto de tensão entre a revolução científica, a par do crescimento das cidades, e a procura de uma essência ligada à natureza humana e às suas origens no mundo natural. A fuga (por vezes, quase política) da cidade para a natureza iniciada por artistas românticos, em que essa tensão do binómio cidade/campo contém ainda um olhar marcadamente citadino – a natureza é percecionada como um lugar distante e idílico ou pitoresco, em vez de tangível e vivencial –, é prosseguida pelos realistas da Escola de Barbizon e, pouco depois, pelos impressionistas, que originam uma progressiva revolução em contradição ao conceito de representação aplicado à pintura. Algumas das suas premissas aproximam-se da estética das pinturas de Pedro Vaz, nomeadamente o contacto direto com a natureza e o desejo de captar a impressão que a paisagem invoca, em detrimento da sua mera reprodução. Este movimento e os seguintes foram contribuindo para uma emancipação da natureza em relação à arte, à ciência e ao Homem.
A paisagem passa a ser considerada enquanto natureza estética, é “sobre uma base vivencial e como modalidade de um encontro que a reflexão estética se situa”[2]. O observador torna-se participante nos movimentos do espaço natural, que contempla estando nele. Rosario Assunto contribuiu para a categorização filosófica da paisagem, considerando as medidas de espaço e tempo, que a tornam imanentemente numa “finitude aberta”, e a circularidade entre (inter)subjetivo e objetivo em termos de simbiose. Allen Carlson propõe o modelo-paisagem e o modelo-ambiental para categorizar a relação entre natureza e arte – no primeiro estabelece uma analogia entre um passeio no campo e um percurso numa galeria de pinturas de paisagem, em ambos a natureza é vista a partir de determinados ângulos e distâncias; o segundo defende que tanto a apreciação estética da arte como a da natureza requerem conhecimentos sobre os sistemas e elementos próprios de cada uma. Azimute abrange as visões destes autores no intuito de aproximar a experiência da exposição à experiência da caminhada, no caso da Casa Azul com a adaptação da primeira sala ao movimento circular próprio do azimute e a projeção do vídeo Indagar no chão da segunda sala, quase à escala real, convidando o visitante-observador a participar na deambulação estética e imersiva do artista como um todo.
O trajeto expositivo começa com o mapa que indica o trajeto na montanha, passando a alternar as pinturas-memórias com a caixa de paisagem, um microcosmos de madeira com um vidro baço, recriando a velatura provocada pela pressão atmosférica da montanha e um fragmento de paisagem, que contrasta com as grandes dimensões das pinturas. Estas partem de fotografias tiradas pelo artista na Serra da Estrela, que traduzem pontos de vista (azimutes) em determinados momentos na montanha, e simulam de forma mais ampla a contemplação e vivência da e na paisagem. Não têm uma pretensão de representação; pelo contrário, aludem a um entendimento (transversal ou universal) da montanha e uma memória da experiência de caminhá-la. A sua suspensão potencia uma leitura corporal e sensação sinestésica de participação. Segundo o artista, são um resultado, um símbolo ou certificado do percurso que foi feito, de ir ao limite transponível da montanha, em que um nevão recente dificultava o prosseguimento da caminhada; pois, 80% do projeto é a experiência de caminhar e a indagação, e os outros 20% são a materialização artística que daí advém – as obras de arte transpõem a galeria e envolvem a montanha.
Este percurso expositivo quase performático conflui para uma espécie de simulacro da vivência da paisagem. A água (ou a procura da mesma) que guiou Pedro Vaz na montanha, cuja própria paisagem altera e que originou o vídeo Indagar, através do qual o espectador se coloca no lugar do artista-caminhante na segunda sala, é a mesma que transformou as imagens-memórias resultantes dessa indagação com a técnica de lavagem da tinta ainda não seca durante o processo, abstratizando a impressão dessa paisagem. Nesse ato de lavagem, parece haver um certo despojamento e purificação, uma metáfora da aceitação da imprevisibilidade da vida (e da montanha). A procura e o encontro incessantemente renovados do artista na montanha, lugar-comum na História do Homem, continua em aberto: é o caminho que nos escolhe ou somos nós que escolhemos o caminho que queremos seguir na montanha e no mundo, e dentro de nós mesmos? Talvez parte da resposta possa entrever-se na filosofia de Henry David Thoreau em Walden: “Fui para os bosques porque pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os factos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que ela tinha a ensinar-me, em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido. Não desejava viver o que não era vida (…) nem desejava praticar a resignação, a menos que fosse de todo necessária. Queria viver em profundidade e sugar todo o tutano da vida (…)”.
Como Daniel Norgren repete numa das músicas da banda sonora d’As Oito Montanhas, “everything you know melts away like snow”. Assim como as paisagens exteriores em que vivemos ou que atravessamos, as nossas paisagens interiores estão em constante transformação. Para o artista-caminhante Pedro Vaz, a mutação a que assiste (e em que participa) nas primeiras impacta e reverbera na travessia sempre inacabada das segundas.
Azimute está patente na Casa Azul até 27 de maio.
[1] Folha de sala da exposição.
[2] Serrão, Adriana. (2004). Filosofia e Paisagem. Disponível em: (99+) Filosofia e Paisagem | Adriana SERRAO – Academia.edu