Top

A Corpofonia de Luisa Cunha no cumprimento da Liberdade — Pronomes Pessoais, uma Obra em Seis Partes

Neste Abril, as Galerias Municipais empenharam-se em integrar uma programação que espelhasse as solenidades do mês, que marca o quinquagésimo aniversário da queda do fascismo em Portugal. Não de uma perspectiva celebratória, mas crítica. Entre os cinco espaços que as compõem, em pelo menos três é-nos sugerida uma análise cuidada e subjectiva (entre imaginários) do que foi, do que é, e do que poderia ter sido a libertação. Entre o relato quase-centenário da luta popular, por Eduardo Gajeiro, no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional; o trabalho feminista de Alice Geirinhas, na Galeria Quadrum; e o exercício anti-colonial de Délio Jasse, no Pavilhão Branco — é nos proposto um leque transversal à luta social que (ainda) persiste desde o Golpe de Estado. Os Pronomes pessoais, peça sonora de Luísa Cunha não são excepção. Instalados entre os cinco espaços das Galerias Municipais e o Atelier-Museu Júlio Pomar, anunciam uma e outra vez (e outra, em loop), que “o 25 de Abril somos todas e todos”. Na verdade, esta é uma obra em seis partes; a frase anterior pertence (apenas) à sexta parte, instalada no Pavilhão Branco, que é relativa ao último pronome e ao último ponto do itinerário a ser percorrido entre os espaços sugeridos, espalhados pela cidade. Sugiro, também, que percorram os outros, ou alguns, para que possam ter acesso não só à fruição plena da obra de Luísa Cunha, mas também, às exposições que residem no interior dos espaços que a artista ocupa — as entradas dos mesmos —, e aproveitando o exercício de derivé, ou deambulação, proposto — aplicar as palavras que nos são enunciadas, ou pelo menos refletir sobre elas.

Pois bem, como referi, as seis partes desta obra de Luísa Cunha irrompem, todas, nas entradas dos espaços expositivos — aquele espaço liminar entre a rua e o seu inverso imediato, o cubo branco asséptico. Aquele espaço entre o informal e o institucional. Já nos dizia a artista, no ano passado, em entrevista ao Público, que o seu atelier é a rua. Esta proximidade à cidade, à urbanidade e à comunidade enquanto motivo de arbitrariedade e relatividade das convenções, das práticas e da linguagem, é constante na sua produção artística e, neste caso em particular, é determinante. A entrada, esse não-lugar que estabelece a transição entre o domínio público e o privado — suspende a partilha do sensível e baralha as atribuições de sentido análogas aos modos de estar, de ver e de escutar. É, portanto, um lugar fragmentário que, ao ser interpelado por uma voz e pautado por um tempo, prescinde da ambiguidade à qual costuma ser associado e torna-se, enfim, num lugar. Um lugar de escuta.

Se há uma relação entre corpo e voz, Luísa Cunha desmaterializa-a através do sistema de som que substitui a sua presença. Em contrapartida, o lugar de escuta a que nos “obriga” devolve essa correlação cúmplice e sinestética entre corporalidade e (a recepção da) oralidade. Em The Other Side of Language: A Philosophy of Listening (1990), a autora Corradi-Fiumara argumenta que é a escuta que gera o discurso e não o contrário, de maneira que vincula a escuta ao acolhimento e à atribuição de sentido. Apesar deste ser um texto um tanto datado — na verdade é da mesma década do advento da produção artística de Luísa Cunha —, ainda considero alguma efetividade nesta premissa, que valoriza o espectador na recepção e interpretação da obra. Por essa razão, acredito que, nesta obra, a repetição, tanto no recurso ao loop, como referente à persistência do mesmo axioma em cada uma das partes, seja com o intuito de emancipar o espectador de vicissitudes externas à realidade efetiva da esfera revolucionária. Não há hipótese, o recurso aos vários pronomes pessoais também o garante: o 25 de Abril sou eu, tu, ele, ela, nós, vós, todes. Não há fuga na perspectiva: a revolução e a libertação é de quem a fez, faz e aplica, todos os dias. Bem sei que o loop é uma característica intrínseca ao trabalho de Luísa Cunha; não obstante, neste caso prático, não acredito que seja uma casualidade estética, nem formal — mas o evidenciar de um eco que perdura há 50 anos e um convite à participação de todas as pessoas, para que continue a reverberar por muitos mais!

Em nota de conclusão, importa destacar que entre o tom coloquial e a corpografia urbana sugerida pela artista, ergue-se de novo o confronto entre instância e substância sensorial, devolvendo à voz e ao corpo um lugar de fala, isto é, um topos político. Pronomes Pessoais, uma Obra em Seis Partes, de Luísa Cunha, está patente nas Galerias Municipais — (1) Galeria Avenida da Índia; (2) Torreão Nascente da Cordoaria Nacional; (3) Galeria da Boavista; (5) Galeria Quadrum e (6) Pavilhão Branco — e no (4) Atelier-Museu Júlio Pomar até 5 de Maio de 2024.

 

Nota: A autora não escreve ao abrigo do AO90.

Benedita Salema Roby (n. 1997). Investigadora e Escritora. Doutoranda em Estudos Artísticos: Arte e Mediações, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Mestre em Estética e Estudos Artísticos e Licenciada em História da Arte, pela mesma instituição. Neste momento encontra-se a realizar uma investigação acerca da correlação entre o graffiti (escrita criativa transgressiva) e a construção da esfera contra-pública e proletária, na cidade de Lisboa. Tem colaborado em projetos independentes com fotógrafos e writers, como é o caso do recente foto-livro da artista Ana Moraes aka. Unemployed Artist, Lisboa e Reação: Pixação não É Tag.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)