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Sobre Flor Cadáver, de Francisco Trêpa

As crianças têm o dom da fabulação. Entregam os anos da infância a heróis, animais e criaturas oníricas. Os adultos, outrora crianças, esquecem este dom: deixam de contar e de ouvir histórias. Encerram-se nos limites da sua própria existência e tornam-se os únicos protagonistas da sua vida. Hoje, os seres que habitaram a sua infância recaem no esquecimento. Não ousam pensá-los, não se atrevem a tocá-los. Porque este protagonismo é cego e hostil; indiferente a todas as formas não-humanas. Hoje, os imperativos ecológicos afirmam-se. Refletir sobre práticas sustentáveis e a crise ambiental implica sair de si mesmo e olhar o outro. De igual para igual. E as histórias poderão ser uma ferramenta para o fazer.

Em Flor Cadáver, de Francisco Trêpa, há uma história que se tece entre as exuberantes peças de cerâmica.

Estamos na Rua Antero de Quental 55 A, num lugar protagonizado por insetos polinizadores e pela planta Rafflesia. Conhecida por exalar um odor semelhante ao de um corpo em decomposição, Rafflesia é flor-cadáver – flor que se tornará cadáver na ausência destes insetos. Em continuidade com o trabalho Polinizadores da Serra da Estrela, desenvolvido por Francisco Trêpa a propósito do projeto Arts 4 People and Earth, o que vemos são, sobretudo, cenas dramáticas estáticas: polinizadores operários, caídos e agarrados. O seu movimento é interrompido pela nossa presença e o gesto fica cristalizado na matéria.

Peça a peça, palavra a palavra, constrói-se uma narrativa indissociável do percurso que traçamos na galeria. Os polinizadores estão cansados de competir com a máquina – o Drone Queen – e de tentar sobreviver num mundo onde quem deveria ser guardião é o responsável pela sua extinção. É certo que esta história recorre a cenários e figuras fantasiosas. Mas não é por isso distante da realidade.

As obras Keeper e Killer, dispostas frente a frente, revelam a dicotomia entre a responsabilidade e a manifesta intervenção do homem no meio ambiente. Se, por um lado, Keeper nos remete para um espaço de refúgio (com contornos semelhantes aos de uma planta, a escultura atrai os insetos e abre-se para que se possam refugiar no seu interior), por outro, Killer, fechado sobre si mesmo, afigura-se austero e impenetrável. Perante esta ambiguidade, resta questionar: o que reserva o futuro? Francisco Trêpa não formula uma resposta definitiva. Ainda assim, esboça um desfecho otimista – um Abraço. Como uma réstia de esperança, símbolo da reconciliação entre o homem e a natureza, é esta a obra que ocupa a última sala da exposição.

Entre as cores vivas e as figuras barrocas vidradas, recuperamos o dom da fabulação. Em Flor Cadáver, estamos entregues à narrativa e empáticos com os seres que ocupam este espaço. Somos de novo crianças – um pouco que seja, por pouco que dure. E, pelo caminho, contar histórias torna-se um gesto político e ecológico. Afinal, entramos neste universo fictício e dele saímos: conscientes da importância dos polinizadores e despidos de uma perspetiva antropocentrista.

Com curadoria de Ana Cristina Cachola, Flor Cadáver é a mais recente exposição de Francisco Trêpa. Está patente na Galeria Foco até 12 de maio de 2024.

Maria Inês Mendes frequenta o mestrado em Crítica e Curadoria de Arte na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Em 2024, concluiu a licenciatura em Ciências da Comunicação na Universidade NOVA de Lisboa. Escreve regularmente sobre cinema no CINEblog, uma página promovida pelo Instituto de Filosofia da NOVA. Realizou um estágio curricular na Umbigo Magazine e, desde então, tem vindo a publicar regularmente. Colaborou recentemente com o BEAST - Festival de Cinema da Europa do Leste.

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