Aconteceu em Veneza: a 60ª Bienal a dar que falar (e mostrar) like crazy
Estrangeiros em todos os lugares, mas com muito estilo
De um lado, temos os entusiastas daquela que se prenunciava como a primeira Bienal da história a incluir grupos minoritários, artistas excluídos, todos os “estrangeiros” do mundo; do outro, estão os revoltados que acusam o curador, Adriano Pedrosa, de ter organizado uma Bienal de contornos ultrapassados e reacionários, exclusiva e fora de sintonia com os tempos, transformando os que são “diferentes” em bichos de estimação. Certamente que nenhuma Bienal de Veneza agradou a todos os paladares, mas a de 2024 será lembrada como uma espécie de campo de batalha de opiniões e teses divergentes.
Mas enfim, como relatar Foreigners Everywhere – Estrangeiros em Todos os Lugares?
Trata-se, sem dúvida, de um projeto curado com muita atenção, especialmente no pavilhão central dos Giardini, onde Pedrosa configurou uma mostra absolutamente perfeita, harmoniosa e sem tropeços: todas as salas merecem notas altas, sobretudo pelos diálogos concebidos entre os artistas de hoje e os de ontem – o que se denota pela relacionação das pinturas de Filippo de Pisis com as de Louis Fratino, das esculturas do jovem Victor Fotso Nyie com as geometrias de Rubem Valentim, e dos desenhos de Joseka Mokahesi Yanomami com as imagens captadas por Claudia Andujar.
Autodeclarando-se “o primeiro curador queer” da história da Bienal de Veneza, Adriano Pedrosa proporciona uma ampla visibilidade a vários artistas que abordam, ou abordaram, temáticas sexuais, talvez o último tabu por quebrar na nossa sociedade mais do que líquida. Muitas são as obras em Estrangeiros em Todos os Lugares a tratá-las: além de Louis Fratino e dos seus rapazes ingénuos e lânguidos, expõem-se as pinturas de “cruising” de Salman Toor, já consagrado pelo mercado – é representado pela galeria nova-iorquina Luhring Augustine; o super-fotografado mosaico retratando um beijo entre dois lutadores, realizado pelo artista libanês Omar Mismar; o chinês Xiyadie, com as suas obras homoeróticas em recortes de papel; ou as lindíssimas séries fotográficas dos artistas Miguel Ángel Rojas e Dean Sameshima, a dar as boas-vindas aos visitantes.
Porém, se nos Giardini a exposição alcança a sua melhor forma, já no Arsenale as dimensões dos espaços parecem engolir a muita, demasiada, pintura presente na Bienal de Pedrosa: apesar de algumas grande instalações – como a do Arquivo dos Artistas Desobedientes, criado pelo curador italiano Marco Scotini, com uma excelente execução; a do artista colombiano Daniel Otero Torres, a sinalizar o problema da água potável na região de Bogotá; ou a do coletivo neozelandês Mataaho, um dos vencedores do Leão de Ouro -, a mostra parece perder aqui um pouco da sua perfeição, enfraquecendo-se.
Mas, de facto, o que chama a atenção é a identidade museificada desta Mostra Internacional de Artes Visuais, como se tivesse chegado a Veneza vinda de um catálogo raisonné de uma qualquer grande instituição: os tópicos desconfortáveis evocados pelo curador são tratados de forma álgida.
Os pavilhões nacionais
Em alternativa à exposição precisa e fria curada por Pedrosa, este ano vários pavilhões nacionais teriam merecido um Leão ou, pelo menos, uma menção especial.
Por exemplo a Espanha, cujo projeto Pinacoteca Migrante, de Sandra Gamarra Heshiki – primeira artista emigrada escolhida para representar o país em mais de um século -, coloca nas paredes um verdadeiro museu, procurando desafiar a cultura tradicional das instituições culturais espanholas, “apresentando uma série de narrações desde sempre silenciadas”, de acordo com o texto do curador Augustín Peréz Rubio, dando o protagonismo não somente aos migrantes humanos, mas também às plantas e às mercadorias, questionando mesmo o conceito ocidental de “pinacoteca”.
Şerban Savu, artista representante da Roménia, demarca-se das temáticas iluminadas por Estrangeiros em Todos os Lugares, pondo em cena um soberbo políptico composto por quarenta pinturas a refletir sobre as noções de tempo: a do trabalho e a do tempo livre, misturados segundo profissões, lugares e, sobretudo, políticas. Şerban, cujos estudos o levaram dois anos a Roma, lembra-nos como após a queda da ditadura de Nicolae Ceaușescu, em 1989, o seu país ficou na situação límbica revelada pelos seus quadros, onde atividade e repouso – quer em escritórios, quer em ambientes íntimos – se miscigenam.
Outra participação nacional a salientar é a da Sérvia: Aleksandar Denić desafia-nos a refletir, com a sua Exposicion Colonial, sobre o quão a nossa existência, mesmo vivida no lado “colonial” do mundo, tenha sido, ela própria, colonizada por outras culturas e, mais do que isso, pelas economias globais desenvolvidas com a concordância de todos os governos, ou quase, no último século.
Wael Shawky, artista que representa o Egito – também em destaque no Palácio Grimani, com a exposição I Am Hymns of the New Temples -, tem sido saudado como um dos protagonistas a merecer o Leão de Ouro, e com toda a razão: o seu projeto Drama 1882 é um musical baseado na memorável revolução de ʿUrābī, que ocorreu no país africano contra o domínio imperial. A encenação épica, dividida em vários atos, parte de uma rixa num café de Alexandria e vai até ao bombardeamento maciço da cidade pelas forças britânicas. Trata-se de um projeto realmente diferente, orquestrado com sabedoria e bom gosto: «Para mim, foi importante representar algo significativo da história do Egito, falar da colonização inglesa em relação aos acontecimentos atuais. Sempre fui fascinado pela ideia de circunscrever momentos particulares da história e lê-los de um ponto de vista diferente», afirma Shawky.
Colocado à entrada dos Giardini, o Pabellón Criollo da artista venezuelana Sol Calero merece uma visita demorada entre os seus bancos azulejados e paredes coloridas, relembrando-nos a arquitetura da América do Sul, entre a tradição e o estilo colonial. Construído com recurso a materiais recuperados de outras intervenções nos pavilhões presentes na Bienal de 2023, a obra constitui uma verdadeira estrutura por si mesma, cuja vida, após a Mostra Internacional, dependerá de um processo de relocalização na área de Veneza.
Curioso, o Pavilhão da Suíça idealizado pelo suíço-brasileiro Guerreiro do Divino Amor, cujo projeto sobre a capital italiana, Roma Talismano (uma das duas partes da exposição) – realizado durante a sua residência no Instituto Suíço da Cidade Eterna, em 2022 -, poderia ter perfeitamente representado a Itália, enquanto no Arsenale, o pavilhão da nação que há mais de cento e vinte anos hospeda a Bienal de Veneza – a mais antiga do mundo -, acolhe o projeto sonoro Due qui – To Hear, do artista Massimo Bartolini: apesar de ser bem melhor do que muitas das participações que já vimos no pavilhão italiano, a instalação não tocou muito o coração dos insiders do mundo da arte.
Para lá da Bienal: o exagero em todas as fundações
A Grande Beleza, do realizador Paolo Sorrentino, o último filme italiano a ganhar um Oscar em Hollywood como “melhor filme estrangeiro” há dez anos, pareceu-nos o pano de fundo perfeito no que diz respeito aos demais eventos acontecidos durante a semana de abertura da Bienal: uma multidão a tentar entrar em festas e eventos, para experimentar os quinze minutos de celebridade numa das cidades mais fascinantes e caras do mundo.
Exagerado é o projeto do artista suíço Christoph Büchel, Monte di Pietà, criado para os salões da sede veneziana da Fundação Prada. Refletindo sobre as antigas instituições de caridade que ofereciam empréstimos de pequena escala em condições mais favoráveis que as do mercado, partindo da história do palácio Ca’ Corner della Regina – sede do Monte di Pietà de Veneza, de 1834 a 1969 -, Büchel construiu uma complexa rede de relações espaciais, económicas e referências culturais, investigando o conceito de dívida como raiz da sociedade humana e o principal veículo através do qual os poderes político e cultural se vêm exercendo. A exposição apresenta-se abertamente como a resposta definitiva aos projetos cuja identidade pretende constituir uma encruzilhada temática de mesclas e intercâmbios comerciais e artísticos, observando o presente: entre os milhões de objetos de escasso valor presentes em Monte di Pietà escondem-se obras de arte, de Kounellis até Ticiano, quadros acumulados, bacios empilhados, máquinas de lavar roupa e demais instrumentos conhecidos da humanidade; um arquivo sem precedentes, mesmo no percurso de uma das mais corajosas e ricas instituições globais para a promoção da arte de hoje em dia.
Exagerada e desorientadora foi a apresentação-performance, aliás, o “projeto-encontro” – como a artista Eun-Me Ahn o define – Pinky Pinky Good, na ilha de San Giacomo in Paludo (adquirida pela colecionadora turinesa Patrizia Sandretto Re Rebaudengo, em 2021). Durante três horas, exclusivamente na manhã de 19 de abril, centenas de art lovers levados até lá de barco tiveram a oportunidade de entreter-se com música, performances, nuvens de fumo roxas, bolhas de sabão e cantos de várias origens, tentando estabelecer, segundo o projeto, uma ligação entre a vida após a morte e o presente. Eun-Me Ahn, apaixonada por práticas xamânicas e dança contemporânea, concluiu o seu rito vertendo simbolicamente água da lagoa de Veneza, usando um guindaste. Um regozijo total.
De volta à cidade, Pierre Huyghe, em Punta della Dogana (sede da Coleção Pinault), transforma os ambientes com o projeto Liminal: guiados pelo interesse do artista francês nas relações entre o humano e o não-humano, entramos em salas escuras e deparamos com objetos misteriosos, criaturas alienígenas falando uma língua desconhecida, num entendimento das ficções como “meios de acesso ao possível ou ao impossível – o que poderia ou não poderia ser”, de acordo com o pensamento do artista.
Voltando à pintura, Harold Stevens é o artista americano escolhido pelo galerista Tommaso Calabro para inaugurar a sua segunda sede em Veneza, no Campo San Polo. Obcecado pelos homens, amigo de Andy Warhol e protegido da galerista francesa Iris Clert, Stevens participou também na “Bienal Flutuante”, em 1964: tratava-se de uma exposição coletiva a bordo do barco Bella Laura, ancorado ao lado da Igreja da Saúde, organizada pela mesma Clert, e que nos dias que antecederam a inauguração oficial da Bienal foi acusada de difundir pornografia.
O jovem italiano Guglielmo Castelli, representado pela galeria Mendes Wood DM, está em cena no Palazzetto Tito, sede da Fundação Bevilacqua La Masa, com uma ótima e inédita produção pictórica inspirada por um livro de conselhos para “orientar” a índole das crianças, Improving Songs for Anxious Children, descoberto por acaso na Biblioteca Pública de Nova Iorque durante uma viagem do artista.
Ainda outra Fundação em Veneza é a da produtora Beatrice Bulgari, In Between Art Film, há dois anos confinada aos espaços do Complesso dell’Ospedaletto. Este ano, por aqui há Nebula – “nuvem” ou “névoa”, em latim -, segundo capítulo de uma série de exposições organizadas pela Fundação que visam prosseguir o estudo dos estados de visão e perceção extra-visual, iniciadas em 2022 com Penumbra. Nesta edição, aprofunda-se o diálogo narrativo e espacial entre o meio da videoinstalação e a arquitetura que a hospeda. A não perder as produções inéditas da dupla brasileira Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado, do italiano Diego Marcon e do artista paquistanês Basir Mahmood, cujo projeto é um reconhecimento deslumbrante e tocante das rotas migratórias.
Uma nova abertura, no bairro – ou sestriere, conforme a toponímia veneziana – de Dorsoduro, é a do Palácio Diedo, a recém-adquirida sede italiana de mais uma Fundação, a germano-americana Berggruen, criada pelo investidor Nicolas Berggruen em 2010. Após dez anos de abandono e dois de profundas remodelações, o prédio reabriu as suas salas com a exposição coletiva Janus, um conjunto heterogéneo de obras que pretendem criar uma ponte entre o este e o oeste, impulsionadas pelas intervenções site-specific do japonês Lee Ufan a unir-se com as imagens fotográficas de Hiroshi Sugimoto e a sugestiva instalação de Urs Fischer, entre muitas outras.
Apesar de tudo, mesmo na ausência das grandes galerias internacionais a arrendar espaços em Veneza para mostrar, como é de tradição, os art stars, os números da Bienal deste ano já são muito eloquentes: foram quase 27 mil os jornalistas credenciados nos dias de pré-abertura (19% a mais face a 2022) e quase 9 mil os visitantes no primeiro dia de abertura, sábado 20 de abril (5% a mais, comparado com a edição recorde de 2022): em Veneza, o exagero voltou a ter a personalidade certa.