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O Kapelismo como modo de resistência coletiva: ETC – Extraction | Trade | Cashtration, de Yonamine

Yonamine nasceu em Angola em 1975, no ano em que o país se tornaria independente perante o poder colonial português – o que daria lugar a uma Guerra Civil que se alargou por várias décadas. Filho de uma liberdade aparente, o seu trabalho é fruto de uma reflexão vincadamente política sobre a multiplicidade da experiência do viver quotidiano nesse território pós-colonial. Pensa essa história-memória vivida, que é tanto comum-coletiva quanto individual-pessoal, através da ironia, do sarcasmo, do humor e da crítica mordaz, num processo quase arqueológico que combate a ideia de apagamento de um passado-presente ditado pelo dinamismo das relações de poder. Juntando, acumulando e sobrepondo anarquicamente elementos aparentemente díspares, cria um vocabulário próprio e peculiar que – pela recuperação iconográfica, uso da palavra escrita, e técnicas e suportes diversificados – evoca a cultura pop e urbana através da manipulação de inúmeras referências, para trazer a experiência visual das periferias urbanas para o espaço expositivo – legitimando-as enquanto existência.

 Como é comum na sua prática artística, é importante compreender as questões que enformam o trabalho de Yonamine em cada um dos seus projetos expositivos, de modo a entender a plenitude do seu discurso – e esta exposição na Galeria Cristina Guerra, em Lisboa, não é exceção. Em ETC – Extraction / Trade / Cashtration, Yonamine presta uma declarada homenagem a Paulo Kapela, re-imaginando e, de certa forma, reciclando – como a própria prática de Kapela assim o referia – os projetos expositivos que apresentara na Letónia e Lituânia, co-curados por Alicia Knock (que assina o texto que acompanha a exposição).

Mestre Kapela (1940-2020) – assim era conhecido – fora exemplo e inspiração artística e espiritual para toda uma nova geração de artistas angolanos, entre os quais Yonamine. Formado ao estilo da escola Poto-Poto, em Brazzaville, na República do Congo, tinha um universo muito pessoal, que resultava do seu modo de produzir, combinando objetos díspares e até certo ponto discordantes para a criação de novos contextos. Esse universo assumia o seu auge no atelier do artista na sede da União Nacional dos Artistas Plásticos (UNAP), em Luanda. Reunia num mesmo espaço-tempo elementos de diferentes origens e temporalidades (religiosos, profanos, políticos e espirituais, fossem eles objetos, imagens ou palavra escrita), reciclando vestígios da sociedade para a criação de novos significados e sentidos como forma de empoderamento e resistência – numa tentativa de reconciliar as culturas europeias e africanas através da recontextualização histórica e da reestruturação de uma sociedade fraturada. Uma ação sincrética e intrinsecamente política que via vida e arte como inseparáveis: Kapela habitava artisticamente os lugares. Para muitos o seu atelier era um local de culto, e a sua forma de estar e criar uma religião: o Kapelismo.

Nesta que é a sua quinta exposição individual na galeria, Yonamine revela-se como fiel crente dessa mesma religião que sempre o inspirou, dando corpo aos seus princípios como forma de ver a sua prática renascer – um corpo que dá origem a um novo corpo. Cria um universo que performa e ensaia a vivência comunitária e as relações que daí advém – muitas vezes marcadas pelas trocas comerciais, pela partilha social e por uma (espi)ritualidade sempre presente – num ato de solidariedade que une, é pertença e, por isso, permite resistir. Essas vivências e relações comunitárias e solidárias são evidentes no acumular de elementos metálicos que compõem grande parte das obras na primeira sala da galeria, assumindo especial importância em peças como Chibuco, compostas por diversas placas metálicas de anúncios comerciais extraídas das ruas do Zimbabwe. Estas ganham um sentido mais profundo na forma como foram adquiridas e reunidas: Yonamine aprofundou-se no sistema das relações sociais desse território, compreendeu as suas características comerciais e económicas, descobriu a sua linguagem – baseada na troca e na partilha mútua – e, com isso, criou uma comunidade em torno da sua obra, que viu na cerveja Chibuku um ponto de encontro. Numa perspetiva quase etnográfica, trabalhou no e com o território para entender como a sua comunidade se movia e interagia, cristalizando a memória daqueles com quem se foi cruzando no vídeo que integra a peça CUTTER. O trabalho de Kapela – marcado pelo texto e pela escrita – vê-se reinterpretado em nomes de ofícios e números de telefone: uma identidade fragmentada, mas solidária e una.

Esta noção de comunidade ganha ainda lastro se pensarmos na forma como Yonamine, ao longo do seu percurso, tem vindo a dar voz a identidades não representadas: serão elas os inúmeros altifalantes e colunas silenciados que pontuam as peças, à espera de uma ligação que as faça ouvirem-se? Ou serão elas o rebanho que apenas responde, a solo ou em coro, à estimulação das teclas? Não sabemos ao certo, mas imaginamos. Serão também elas certamente parte do universo artístico e referencial que cobre, em cartazes, os pilares da galeria enquanto templo construído – a comunidade artística como o suporte de algo maior, comum. Um sentido coletivo como processo em construção contínua, com múltiplas temporalidades que nos propõe uma leitura aberta e anacrónica a um tempo futuro.

E se neste primeiro momento da exposição o espírito de Kapela ressoa nas obras de Yonamine, é num segundo momento que este se verá verdadeiramente materializado. Na última das salas da galeria, o artista criou um verdadeiro altar dedicado a Kapela. Um quase cenotáfio instalativo composto por uma panóplia de elementos que remetem ao referido visualmente ruidoso ambiente do atelier do Mestre, num espaço totalmente revestido pelos mesmos cartazes que cobrem os pilares na anterior sala da galeria. Aqui, uma série de painéis – que se camuflam nas paredes da sala – estão repletos de referências sagradas, espirituais, profanas e sociais, mais ou menos recentes, utilizando recortes, colagens e a palavra escrita de uma forma irónica e satírica que serve tanto a crítica quanto a celebração. Seguindo essa mesma lógica, ao centro e em alguns extremos da sala, um conjunto de objetos diversos é colocado em confronto e abre campo a diversas leituras e interpretações – sendo as relações económicas, a espiritualidade e a pobreza um dos “pratos do dia”. Um besouro-do-esterco – o mesmo Sísifo representado em vídeo na entrada da galeria – surge projetado nas paredes deste memorial, não só como ato político – de alguém que desafia o poder através da arte –, mas como ato existencialista que nos recorda o infinito esforço tantas vezes fadado ao fracasso e que nem por isso deixa de ser cumprido: na esperança da fecundação de um bem comum maior.

Esta exposição, mais do que homenagear Kapela, reflete assim a posição de Yonamine perante vida e arte – inseparáveis – numa reflexão crítica permanente sobre as relações culturais e sociais, que se estende além do resgate da individualidade: celebra o poder e resiliência do coletivo para a criação de uma memória comum – num ato de cidadania artística, política e social consciente. Não deixando de ser um processo íntimo de reconciliação, renascimento e descoberta do próprio, este só tem espaço na dimensão comum da noção de comunidade que Yonamine aqui cria, reúne, representa, sustenta e em que se suporta – o Kapelismo como modo de resistência coletiva.

ETC – Extraction / Trade / Cashtration, de Yonamine, para ver na Galeria Cristina Guerra até 4 de maio de 2024.

Mediador Cultural, Curador e Investigador. Mestre em História e Patrimónios e Licenciado em Património Cultural, pela Universidade do Algarve. É Bolseiro de Investigação no DINÂMIA'CET-ISCTE. Tem-se dedicado sobretudo ao trabalho de Mediação Cultural, de Educação Patrimonial e de Gestão de Projetos Culturais, com foco no cruzamento arte-cultura-educação. Tem participado em várias iniciativas nacionais e internacionais ligadas a projetos culturais na área das artes e inovação, como o ILUCIDARE, European Creative Rooftop Network, e Faro 2027. Foi um dos Jovens Embaixadores MACE 2022 e tem especial interesse pela criação contemporânea, estando a concluir a pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA FCSH. Acredita que 'há um futuro no passado'!

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