Espíritos Singulares
Há algo de macabro na vida. Não escolhemos nascer. Quando nascemos, sem opinar, sem mandar, a única coisa que fazemos é gritar de dor para o que aconteceu e para o que nos espera. Nascemos num Estado, vivemos para ele, dentro dele – a maior parte, pelo menos –, e aprendemos a adaptar-nos, a conformarmo-nos às regras, à psicologia social, afetiva e política que governa esse Estado. Mas é macabra, sobretudo, porque, naquela aleatoriedade, naquele desvio mágico a que insondável Natureza nos submete, nascemos, alguns de nós… diferentes, anormais – na terminologia antiga e absolutamente horrenda –, inadaptáveis e, na versão mais benigna, neurodivergentes.
Desde então, a medicina passa a comandar a nossa identidade; controla a nossa autonomia. A medicina, nestes Estados tecnocientificizados, ideologicamente tecnocráticos, assombra-nos, paternaliza-nos, torna-nos dóceis e submete-nos à normalidade da sociedade disciplinada moderna, capitalista e neoliberal, quando enraivecidos pela incompreensão, pela depressão, pela hiperatividade, pelo autismo.
Apreciar L’Esprit Singulier – exposição que reúne dezenas e dezenas de obras de Arte Bruta Coleção Treger Saint Silvestre no Halle de Saint-Pierre, em Paris – é como entrar numa comunidade de inadaptados a esse regime normalizador, neutralizador – gente que resiste, que se encerra em si e nos seus, para se libertar e exorcizar os seus demónios e angústias – que constrói, enfim, os seus mundos, plenos de alteridade, plenos de dor, mas seus. A singularidade reside na capacidade de cada artista conseguir traduzir a imagem mental para a matéria, desenhar o insondável, pintar o invisível, criar a sua própria cura.
A exposição ganha uma força simultaneamente centrípeta e centrífuga. A circularidade da sala atrai-nos para o centro e afasta-nos do mesmo, em direção às paredes, profusamente ocupadas com obras cuja expressividade orbita entre a máxima delicadeza e minúcia, e a gestualidade e os traços largos e emotivos. Tanto nos aproximamos do barco comunitário e ativista de Dexter Nyamainasche, como nos lançam para a obra amorfa de Pascal Tassini, as delicadas composições florais de Anna Zemánková ou as cerâmicas quase satânicas de Carolein Smit.
Não se pretende definir aqui, a fundo, a designação de Art Brut – mantenhamos a originalidade e a gravitas da língua que lhe deu corpo. Certas coisas têm um peso específico que se perde na tradução. Vinda das margens, dos que não têm representação social ou política, dos sem nome – os anónimos que marcam a sua existência com o emprego da mão, com a formação das formas e a deformação do tempo e do espaço – a Art Brut é esse conjunto de artistas que escapa muitas vezes ao mercado e ao sistema regularizador e regulado da arte. Sem serem sinónimos, nessa tendência que historiadores e especialistas têm de etiquetar ou taxonomizar cada coisa, a Art Brut surge ao lado da Arte Singular, das Artes Marginais ou da Arte Espírita. Tudo conjuga a loucura, o dissenso com a norma; os artistas sintonizam em frequências diferentes, obrigando a própria História da Arte a reescrever-se e, como refere um dos colecionadores, António Saint Silvestre, “a corrigir-se ou reinventar-se”. São esconjuros da profundeza da alma, gritos de raiva ou libertação, riscos, tramas, colagens e pinceladas de drama, terror, psicose, mas também de superação. Esta é uma arte regeneradora, por mais tenebrosa que pareça. Este é o caminho possível para os inadaptados – os meus irmãos e irmãs inadaptados, os indecisos do género, os que não construíram a sua individuação se não através da criação, doentes, depressivos, cavalgando a astenia dos tempos modernos, a atonia da vida, a anomia do mundo e das instituições.
A subversão pulula de obra para obra. Em Apocalypse, Dado (Mirodrag Djuric) pinta o fim do mundo em tons pastel, como se fosse uma paisagem delicodoce desejada que, no entanto, adoece e nos retrai sob os nossos medos vindouros. Uma nuvem que esborra contornos violentos e que só a duração bergsoniana – la dureé – nos revela a representação de facto daquela massa informe de monstros. Sphinx de Paris au Louvres et Bonapart d’Abrautès, de Aloïse Corbaz, é uma obra frente e verso que seduz pelo desenho cómico, inocente, de um erotismo quase infantil. Há qualquer coisa nas maquetes de A.C.M. que remetem de imediato para as prisões tortuosas e indefetíveis de Piranesi – não só no próprio desdobramento quase fractal de construções, mas o processo parece encerrar o artista num espaço-tempo único, colando, cuidando, enferrujando, artificializando um mundo em miniatura imenso. As cerâmicas de Mónica Machado, composições minuciosas de vários objetos colados, como se um aglomerado de souvenirs e bibelôs se tratasse, reconhecendo-se nelas algo de indescritivelmente português. As ilustrações de Henry Darger contam estórias de crianças, que se tentam libertar dos adultos escravizadores e celerados. Darger viveu uma vida difícil, como muitos dos artistas presentes na coleção. Quando morreu, os senhorios descobriram milhares e milhares de páginas sobre a sua vida e uma obra ficcional cuja publicação seria impensável devido às 15 000 páginas. Os desenhos de Jaime Fernandes – figuras antropomórficas, fantasmas e animais, de uma vida passada no Hospital Miguel Bombarda, onde foi diagnosticado com esquizofrenia. A obsessão por números, listas, estatísticas de George Widner, que compõe mapas e cartografias em carimbos, caneta e marcador…
São estas histórias que me interessam. Perder-me na loucura alheia, perder-me na vida de outrem. Ser mero escritor ao vento das vidas dos génios, que como Christian Berst recorda – grande conhecedor da coleção Treger Saint Silvestre e especialista nas matérias da Art Brut –, segundo a teoria aristotélica “o génio e a loucura são indissociáveis”. Divagar numa exposição sem fim, de personagens, máscaras e identidades que se vão construindo consoante as suas biografias. A vida importa. A história da vida importa. Estes indivíduos não são coitados. Isto não é resultado de uma terapia ocupacional. Isto é arte, simplesmente, feita com a vida em estado cru, por vezes com sofrimento, é certo, mas também com um sentido de jogo, de prazer.
Colecionar estes artistas é dar-lhes a dignidade que nunca tiveram em vida. É dar-lhes a hipótese de uma nova vida, agora no centro, por todos reconhecidos, livres das suas amarguras – se é que isso lhes importe, se é que isso lhes interesse. Porque há estados de ser imperscrutáveis, que vão sendo… simplesmente sendo.
A Art Brut parece dar gravidade a uma vida sem peso, em que as coisas flutuam sem amarras e tudo oscila freneticamente numa atomização que esquece a importância da criação para a vida. E é por isso que é muitas vezes mais fresca que a arte produzida pelos ditos artistas contemporâneos – um futuro perfeito seria um futuro sem categorias. Artistas. Ponto.
L’Esprit Singulier – uma folia de loucura libertadora – está patente no Halle de Saint-Pierre, em Paris, até 14 de agosto. Com a curadoria de Martine Lusardy, esta é uma exposição que conta com dezenas e dezenas de artistas de vários continentes, numa ampla mostra do que representa a Coleção Treger Saint Silvestre, sediada em São João da Madeira e com mais de 1500 peças.