Top

Pedro Henriques e José Loureiro num Tête-À-Tête: acumular realidades, aprender metáforas e apertar botões

Por entre as ruelas pacatas de uma Ericeira noturna e invernal, as vitrines da Hélder Alfaiate – Galeria de Arte fazem extravasar as cores de Pedro Henriques e José Loureiro. A mais recente do ciclo Tête-À-Tête, PUNCTUM VISUS é a sétima mostra desta série de exposições iniciada em 2022, com organização e curadoria de Frederico Portas e Tomás Agostinho, com o objetivo de propor um diálogo anacrónico entre um artista emergente e um artista veterano. A conversa é iniciada pelo interlocutor mais jovem, que escolhe o colega já consagrado ao qual sugere uma questão ou uma resposta. Tratam-se, por vezes, de peças encomendadas especificamente para esta interação inédita, e, noutros casos – como o da presente exposição –, novas criações encontram ecos de uma outra vida, renovada pelas possibilidades interpretativas que nascem no seio daquela relação fugaz.

Está indicada, portanto, a trilha a qual percorrer para pensar este encontro entre Pedro Henriques e José Loureiro. Em primeiro lugar, importa reconhecer – como o texto curatorial bem o faz – as ressonâncias que naturalmente emergem de ambos os corpus artísticos, quando colocados lado a lado, frente a frente. Depois, interessa identificar as nuances que o trabalho de um pode revelar sobre o trabalho do outro, insinuando os pormenores que os unem e afastam de maneiras não tão óbvias. Enquanto escrevo este breve ensaio, lembro-me de outro diálogo criativo para o qual afinei a escuta há quase exatamente um ano, entre David Correia Gonçalves e Paulo Brighenti, na Brotéria. Recordo como é desafiante, mas, sobretudo, prazeroso, o exercício de encontrar radicais comuns entre linguagens distintas – a epifania de quando se descobre, por exemplo, uma palavra em português que se diz igual em inglês. Naquela altura, pude traduzir uma mesma e singular atenção ao tempo estratificado em cada material e às convivências interespécies que se acumulavam nos processos de reflexão e produção da obra. Agora – como em toda relação e troca, nunca repetida –, as questões que descubro nesta outra dupla inesperada são de natureza absolutamente distinta.

Antes de mais, se assumirmos uma primeira perspetiva mais genérica – um ponto de vista quiçá distante e aéreo, já que é precisamente sobre o problema do olhar situado que se desdobra PUNCTUM VISUS –, uma aproximação torna-se logo possível: mesmo com pouco mais de duas décadas de diferença, tanto Pedro Henriques, vencedor do Prémio Novo Banco Revelação 2014, como José Loureiro, que apresenta atualmente a sua primeira grande individual em França, exibem uma carreira de coesão surpreendente. É tal o rigor estético na prática de ambos os artistas que os seus códigos visuais se tornam um alfabeto, uma gramática fechada e fixada em dicionário. Os signos são tão estáveis e os sentidos, tão precisos, que, somente assim – como num idioma que enlouquece pela poesia –, podem também ser quebrados, desvirtuados. É por isso que prontamente reconhecemos os falsos relevos ou as cores e padrões artificiais de Pedro Henriques, ou as pinceladas pungentes e formas autónomas de José Loureiro, sem que estes nos pareçam recursos esgotados. Pelo contrário, cada nova série anuncia uma pequena-grande curva, uma palavra deslocada, um neologismo inusitado que descentraliza aquela linguagem familiar.

A analogia à linguagem, aqui, não é à toa. Henriques e Loureiro articulam um discurso eloquente, que denota clareza e minúcia em cada escolha nos seus processos criativos – eu mesma fui disto testemunha. Esta elaboração, contudo, não é habitual ou facilmente associada às suas obras. Para replicar as palavras de Loureiro em entrevista passada, “[a]s cores comunicam entre si através de um código indecifrável que é imune até ao algoritmo mais poderoso. São escorregadias como uma enguia e espinhosas como uma pera. Nunca descobriremos uma Pedra de Roseta[1] para as cores”. Assim, ao falarmos desta linguagem deslizante, falamos, também, de um jogo de atrações e repulsas, visibilidades e invisibilidades; em suma, tentativas de inventar ou deslocar significantes até que as suas formas, posições e relações específicas produzam significados originais. Em PUNCTUM VISUS, é evidente que esse movimento para a abstração só é mesmo possível, como qualquer metáfora bem feita, porque subsiste por cima de motivos e elementos bastante concretos.

Mais de perto, aproximando os olhos de cada peça, vamos identificando cada uma dessas camadas do real (mesmo aquelas que são, elas próprias, também um bocado abstratas). José Loureiro descobre criaturas microscópicas no seu estudo pictórico, aqui condensadas em Ácaros (2018). Tratam-se de figuras cuja realidade está sempre oculta, talvez um pouco como os seus traços intensos e gestos largos – que, estando mais ou menos presentes no mundo, só podem verdadeiramente emergir através do olhar e da coreografia da arte. Nas duas obras da série Color cave de Pedro Henriques, por exemplo, são os desenhos espontâneos do artista sobre o papel que se convertem numa espécie de mapa digital para as suas composições híbridas. Ao conviverem, ainda, com outras texturas forjadas a posteriori sobre a tela de madeira, os seus territórios cromáticos difusos – repletos de transparências e gradientes de impossível reprodução na tinta – recobram força na não-aleatoriedade sobre a qual se ancoram. Os botões que fixa, por último, sobre cada arranjo – e que de facto parecem perfeitamente localizados, como se ali desde sempre estivessem – acrescentam uma superfície final a este amontoado de operações e apontam para o Punctum da obra: desta vez, o de Barthes, aquele componente ativo, da ordem da manifestação ininteligível, que penetra, transpassa, punge. Que nos chama ao toque. O ponto final do seu texto.

PUNCTUM VISUS :: Pedro Henriques x José Loureiro está patente na Hélder Alfaiate – Galeria de Arte até 28 de abril de 2024.

 

[1] A Pedra de Roseta é um fragmento de uma estela de granodiorito erigida no Egito Ptolemaico, cujo texto foi crucial para a compreensão moderna dos hieróglifos egípcios.

Laila Algaves Nuñez é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio), mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH) e doutoranda em Estudos Artísticos - Arte e Mediação (NOVA FCSH) com bolsa FCT, pesquisa o potencial da escrita e da ficção como ferramentas para a salvaguarda dos Direitos da Natureza, propondo e participando em projetos de investigação-ação que atravessam as intersecções entre palavra, performance, imaginação e ativismo ecológico.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)