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Espanto: A Coleção Norlinda e José Lima em Diálogo com o Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto na Casa Comum

No texto que acompanha a exposição Espanto, José Lima cita Diogo de Macedo (1889-1959) no ensaio Colecionador Civilizado (1945), a partir do artigo homónimo da investigadora Adelaide Duarte: “Nos grandes meios da civilização, ela [a coleção] deixou de estar fechada na sombra das fortunas individualistas, abandonou as redomas privadas, tornou-se luz na luz de todos os espíritos e todos os lugares”[1]. O colecionador, tomando as palavras do escultor e crítico de arte, lança o mote para o projeto expositivo patente na Casa Comum, com curadoria de Ana Anjos Mântua e Fátima Marques Pereira: o da partilha da sua coleção com toda a comunidade e neste caso em particular com a academia, potenciando um acesso mais democrático à cultura e à arte contemporânea.

Espanto surge da sensibilidade do colecionador quando adquire uma obra e para além dela intenta conhecer o artista, mas também do constante deslumbramento quando ainda as admira, sobretudo nas muitas curadorias que se têm realizado a partir da sua coleção, uma das maiores de arte privadas do país, disponível ao público no Centro de Arte Oliva (São João da Madeira) desde 2013, onde se encontra em depósito de longo prazo.

No entanto, Espanto igualmente poderá advir da singularidade dos preceitos do projeto expositivo: o do diálogo entre as peças de arte contemporânea de Norlinda e José Lima com o acervo do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto (MHNC-UP), constituído por coleções de peixes, anfíbios e répteis; entomologia; arqueologia, etnografia e antropologia biológica, e de instrumentos científicos, entre outros.

As curadoras, pretendendo a ligação ou o confronto entre as coleções, criaram um desenho expositivo tendo em conta geometrias, cores e simbologias, simultaneamente fomentando um pensamento sobre a História do conhecimento, da reflexão e da experimentação, visto o diálogo estar a acontecer na Reitoria da Universidade do Porto. A História do colecionismo e da museologia está espelhada ao longo de todo o percurso – caso significativo do pequeno gabinete de curiosidades da artista luso-alemã Susanne S. D. Themlitz Marginais e Dissimuladores (Coleção da vida privada dos Parasitas) (1993) ao lado de uma caixa entomológica com escaravelhos e de uma gaveta de armário entomológico com borboletas de várias proveniências (1920 -1970).

Ao mesmo tempo, e como se trata da exibição de peças de arte contemporânea, as curadoras também desejaram realçar as questões da atualidade nelas manifestas, quer ao nível geopolítico, económico, social e cultural. Ensejo com maior destaque pela junção com as peças de teor científico e de outras temporalidades. Logo à entrada, a fotografia de Eva Davidova Untitled (Dani) (2007), imagem da exposição, onde está um rapaz de costas surpreendentemente pendurado no canto de uma parede, enceta um tom humorístico, de espanto e de curiosidade pelo que iremos ver a seguir.

Na primeira sala destacamos a peça Tiroir (1988) de Christian Boltanski, uma fotografia a preto e branco de uma mulher, juntamente com negativos de vidro (século XX) com imagens de crânios da coleção do MHNC-UP. Ao lado, uma fotografia de José Chambel da série Tchiloli (1997) de um homem negro e do negativo de vidro com uma representação semelhante, Soba Chaúto (1903).

Do mesmo modo, é curiosa a relação entre as linhas, cores e transparências de Death comes in Silence (Homage to Joaquim Bravo) (1992) de João Paulo Feliciano juntamente com Decalques de arte rupestre (1938). E o jogo de formas, volumes e representações entre as esculturas Sem título (1987) de Miguel Branco, Homem cego que tudo vê (2021) de Fernão Cruz e uma Máscara funerária da Época Greco-romana. Não descurando o legado e imaginário da Grécia e Roma antigas espelhadas em Sem título (Mundo #5) (1998) de Leonel Moura, reverberando ao lado de uma réplica em gesso de Orfeu e Eurídice (Séculos XIX-XX) e de uma Skyphos e de um Lekanis do século IV a.C. Rematado no centro da sala com Cabeça de Heraclito e Oroboro (2006/2008) de João Maria Gusmão + Pedro Paiva. Proporcionando a reflexão sobre como estas referências e simbologias vão ecoando ao longo de toda a História da Arte Ocidental, tal qual André Malraux teorizou em O Museu Imaginário (1947), vemos, ainda, 9 pieces from Monsieur Valadares serie (2022) de Nuno Nunes-Ferreira, reforçando as potencialidades do arquivo.

Na segunda sala, A colher na boca [Poesia de Herberto Helder] (2008) de Maria José Oliveira juntamente com Garfos de 1941 faz-nos sorrir prazerosamente. Igualmente os padrões e texturas de O meu sol chora (2016) de Sara Bichão ao lado de um tapete colorido do século XX, encimado por uma armadilha para pássaros com a mesma datação. Ou Roda Amarela (2015) e Corda (2014) de Musa Paradisiaca, onde é estabelecida uma conexão com as formas de Braçadeiras e Pulseiras dos Séculos XIX e XX. Não excluindo Postfossil (2023) de Paulo Arraiano, uma Preparação osteológica expandida de um esqueleto de pombo-comum (Columba livia) e duas espécies de corais que se assemelham a duas esculturas. Ressalvando a dualidade entre as formas e estranheza de Model (2011) de Dan Graham e dos Modelos de cristalografia ótica para ilustrar projeções estereográficas.

Na terceira sala salientamos Untitled (1995) de Anish Kapoor e as suas semelhanças com Carta da Ilha do Fogo (1929), assim como Sem título (Série Sopro Athenas) (2021) de André Cepeda, recordando novamente o legado greco-romano na cultura ocidental contemporânea. Não descurando a peça Bird of Passage (Ave Migratória) (2021) de Inês Osório, uma escultura feita de sapatos em forma de asas, juntamente com Tamancos e chinelos do Século XX, lembrando apenas a profissão de José Lima, enquanto industrial do setor do calçado. Todavia, uma Balança analítica de cadeia (c.1930) encontra-se no centro da sala, equilibrando e desequilibrando o espaço, dando um maior pendor a Tudo pode quebrar (2008) de Mauro Cerqueira. Uma instalação com duas cadeiras a apoiarem uma escada de madeira, com copos partidos no chão, e na parede, a inscrição “Tudo à nossa volta pode quebrar / Mas nós os dois ficaremos seguros pelo nosso amor”, sugerindo uma certa efemeridade e fragilidade da contemporaneidade.

A exposição conclui com uma obra de Kenny Schachter de 2001, que figura humoristicamente o colecionismo, onde se pode ler: I am Too Poor to be a Collector and Too Untalented to be an Artist. Efetivamente, o projeto expositivo suscita um questionamento sobre o ato de colecionar na contemporaneidade e em Portugal, assim como as muitas possibilidades de exibição e de divulgação de uma coleção privada de arte contemporânea, mas também um acervo de teor científico, realçando as noções multidisciplinares que acompanham a atualidade.

Espanto está patente na Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto até 31 de agosto de 2024.

 

[1] Duarte, A. (2022). Colecionador Civilizado. Em J. Maia, P. P. Pinto, & P. Mendes, Que Horas São Que Horas: Uma Galeria de Histórias (pp. 63-67). Porto: Galeria Municipal do Porto / Ágora – Cultura e Desporto do Porto – E.M. p. 63.

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

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