Em frente da porta do lado de fora, Pedro Paiva na Galeria Francisco Fino
O vento muge. O Elba marulha contra os pontões. Anoitece. Contra o céu da tarde recorta-se a silhueta de um homem. O Cangalheiro. [1]
A exposição individual de Pedro Paiva recupera a peça Draussen von der tür (Em Frente da Porta do Lado de Fora) de Wolfgang Borchert, traduzindo-a por diferentes meios. O drama aborda a incansável procura por respostas do soldado Beckmann, regressado à sua terra natal no pós-guerra, onde nada mais encontra que indiferença e incompreensão por parte daqueles que o rodeiam. Pedro Paiva recolhe dos escombros esta peça, que em Portugal parece estar esquecida, com uma única tradução feita em 1965 e nunca mais reeditada.
O seu autor, Wolfgang Borchert (1921-1947), é um escritor alemão que se insere na chamada Literatura dos Escombros, que designa obras produzidas logo após a Segunda Guerra Mundial. A peça teve, inicialmente, transmissão radiofónica, e estreou nos palcos um dia depois da morte de Borchert, a 21 de novembro de 1947. O escritor tinha 18 anos quando a guerra começou e 24 quando ela terminou, tendo passado os últimos dois anos de vida a traduzir a sua realidade através da escrita, aproveitando-os “como alguém que estivesse em competição com a morte” [2].
Pedro Paiva manuseia incansavelmente a argila, produzindo mais de sessenta esculturas que ocupam toda a primeira sala da Galeria Francisco Fino. As obras tanto evocam cenários da peça Draussen von der tür e de outros contos do autor, como de conexões feitas a partir de textos de Heinrich Theodor Böll, escritor também inserido na Literatura dos Escombros. Vemos figuras de rosto indefinido, telhas, meias, maçanetas, sapatos e as marcas das suas solas, fragmentos de edifícios, escadas e palavras. As obras remetem para a falta de abrigo, a memória e a ruína. Todas diferentes, mas sempre com a mesma urgência nos gestos. Um gesto cru, despido de precisão, acelerado e repetitivo, tal como as palavras de Borchert, tal como o percurso do soldado Beckmann que bate em todas as portas que encontra.
Na repetição há sempre uma procura. Repete-se porque se deseja encontrar algo, repete-se para acentuar a urgência da questão, para que nos oiçam, reforçar uma ideia, encontrar uma resposta. Borchert fá-lo, a sua personagem Beckmann também, e Pedro Paiva repercute este ritmo ansioso.
Nesta primeira sala, estamos permanentemente em frente à porta, do lado de fora. Uma porta que assombra todo o nosso percurso pelas esculturas, olhando-nos, separando o conhecido do desconhecido, o real do onírico. Com pó e sinais do tempo, ela chama por nós, e entramos.
Neste outro lado, a escuridão inunda o olhar e as vozes intensificam a imaginação. No centro da sala, uma coluna emite a voz que interpreta Beckmann, e nas restantes surgem os personagens que com ele falam. Aqui passam-se as cenas de interiores da peça, lugares nos quais Beckmann procura reintegrar-se. Destes encontros surgem diálogos que mostram o grande distanciamento que existe entre o soldado e o mundo que o rodeia, nascendo da sua voz uma trágica canção:
Toda a gente se ria
Enquanto só eu berrava.
A noite descia
De névoa nos cercava.
Só a luz o olhar guina,
A mofina,
Por um furo da cortina.
Quando voltei para casa
Tinha alguém a mais na cama…
Fui covarde, bati a asa,
Estou vivo mas sem dama.
(…) [3]
Atrás de Beckmann, há sempre o estrondo de uma porta que se fecha. Com esse estrondo vem a desilusão que o aproxima cada vez mais do abismo e desespero.
A instalação divide-se também por dois monitores presentes nas salas anteriores a esta. Neles podemos assistir à adaptação da peça realizada por Pedro Paiva. Numa imagem azul sombria, o soldado ganha rosto, assistimos aos seus delírios lúcidos e visões, e é aqui que a atmosfera do sonho se intensifica.
Na escuridão permanecem as motivações pessoais do artista, o porquê da tragédia do soldado Beckmann o motivar tanto. Parece esconder-se nos destroços de Borchert para que as suas ruínas não se tornem visíveis. Tanto que, na folha de sala da exposição, escrita por João Barreto, não há qualquer menção ao artista Pedro Paiva. A reflexão é unicamente sobre a obra de Borchert, a peça, as suas personagens e o seu contexto. É claro que Pedro Paiva encontra nas ruínas de Borchert um abrigo. Nesta encenação, o artista vira a atenção para o escritor alemão, num artifício tão minucioso que nos faz distrair sobre a sua própria condição. Contudo, não podemos esquecer que esta é a primeira exposição individual de Pedro Paiva, depois de quase duas décadas a trabalhar em dupla com João Maria Gusmão.
Retornar após uma separação será sempre difícil, pois dela nasce um caminho que agora se percorre sozinho, sem o outro. Sair e regressar aos mesmos lugares, mas só, arrasta dimensões extraordinárias de solidão e melancolia. E sentimo-lo. Em Frente da Porta do Lado de Fora é profunda e pesada, inquieta e existencial. Recorre ao exterior para olhar para dentro, para se rever, encontrar e associar. Quando sentimos intensamente o que expressa um personagem, é porque nele revemos algo de semelhante.
A exposição está patente na Galeria Francisco Fino até ao dia 20 de abril de 2024.
[1] Borchert, Wolfgang. (1965). Em Frente da Porta do Lado de Fora. Porto: Portugália Editora. p.157.
[2] Palavras de Henrich Boll no prefácio da tradução portuguesa de Em Frente da Porta do Lado de Fora.
[3] Borchert, Wolfgang. (1965). Em Frente da Porta do Lado de Fora. Porto: Portugália Editora. p. 199.