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Entrevista a Mariana Viegas, autora da capa do mês

Foi num dia luminoso de inverno que visitámos a casa-atelier de Mariana Viegas na Arrábida. Duas fileiras de árvores guiaram-nos à entrada. Os enormes ciprestes deram-nos as boas vindas. Entrámos pela cozinha, onde nos foi servido um café. Mas não foi aí que o bebemos – fomos conduzidos para a grande varanda voltada a Sul debruçada sobre a serra. Aí sim, bebemo-lo. Conversámos sobre como aquele lugar foi outrora onde Manuel Amado pintou e, uma vez também arquiteto, transformou algumas das construções. Hoje, ocupado por Mariana Viegas, sobrinha do pintor, e a sua família, para além de ser o lugar onde vivem, recebe artistas em residência durante dois períodos no ano. Existe ainda uma agro-floresta e uma biblioteca de sementes.

“A ideia de vir para a quinta partiu da ideia de trazer vida para a quinta. A vida sendo eu própria, claro, com a minha família, mas também sendo todo o tipo de atividades, sobretudo humanas e não só agrícolas, porque eu não sou agricultora.
Assim, temos estado a receber artistas e projetos criativos que tenham a ver essencialmente com arte e ambiente. A ideia é conseguirmos criar um projeto que dê a possibilidade aos artistas de virem criar para um sítio tranquilo, onde estejam completamente imersos, neste ambiente de campo, mas que ao mesmo tempo tenham proximidade com a cidade, Setúbal, Lisboa. Ou seja, não é um campo completamente isolado.”

O programa de residências Celeiro Air tem lugar no antigo celeiro da quinta, e teve as suas duas primeiras edições no ano passado, contando com a dupla Landra, formada por Sara Rodrigues e Rodrigo Camacho, e Rui Horta Pereira.

Descemos ao estúdio de Mariana Viegas. O portão deixava antever uma grande fotografia emoldurada pousada no chão, na qual a envolvente natural abraça um conjunto de banhistas, muitos, que tentam mergulhar nas águas de um dos lagos de Wannsee, a Sudoeste de Berlim. De costas para o edifício onde Adolf Hitler assinou em 1942 a solução final ou solução final da questão judaica, ou seja, o plano nazi de genocídio da população judia de todos os territórios ocupados pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, Mariana Viegas fotografava esta cena ao longe.

“Wannsee é uma zona onde as pessoas que estão em Berlim vão quando está bom tempo. É uma zona muito bonita, onde existe uma casa museu lindíssima, com uma exposição que mostra exatamente o que aconteceu. Adolf Hitler assinou neste lugar aquilo a que o Terceiro Reich chamou de ‘A Solução Final’, que é assumir que os judeus são carga para matar. Isto é de certa forma fascinante, no sentido de como é que se chega àquele pensamento num sítio tão incrível. Fiz esta fotografia com certeza depois de estar várias semanas, meses em Berlim. Tem assim uma camada de cinzento por cima. Vivi lá quase três anos e por isso conheço bem aquele clima.”

Conta-nos que muitas pessoas que vivem em Berlim apanham o comboio e vão para a praia em Wannsee para apanhar sol e tomar banho. Ali ficam, todas muito branquinhas, “muito arianas”. Não é por acaso que esta “clareira humana” se encontra ao centro da fotografia. Esta ideia do homem enquanto parte da natureza vai ao encontro da valorização da natureza que marca o movimento filosófico do romantismo alemão e que Mariana Viegas explora em alguns dos seus trabalhos. Why Monkeys Do Not Make Good Pets é também exemplo disso. Trata-se de uma imagem do abrigo dos macacos no jardim zoológico Tierpark, localizado na antiga Berlim Oriental, construído com detritos da cidade de Berlim após a Segunda Guerra Mundial, no auge do comunismo.

“Esta foi a imagem que selecionei e achei mais interessante das várias que tirei porque, nesta jaula, optaram por fazer uma coisa que se fazia muito nos jardins românticos, que é recriar uma ruína, como se estivéssemos no meio da Grécia ou em Itália. Existe, na cultura alemã, um fascínio pelo Sul e pelo berço da civilização greco-romana. A ideia da Germânia vem muito daí. E do nazismo também, a ideia do homem perfeito, a estátua grega.”

Colunas, capitéis, frontões de palácios e casas senhoriais neoclássicos, pedaços de ruína são reaproveitados para a construção de uma nova ruína. Uma ruína com uma particularidade, as marcas das balas.

“É interessante imaginarmos a sua construção. É uma construção do selvagem. Um jardim zoológico é uma construção completamente mirabolante e fora de tempo.”

O interesse pela construção do natural ou do selvagem pela mão humana aparece repetidas vezes no trabalho de Mariana Viegas. Fotografou, por exemplo, Monument Valley, nos Estados Unidos da América, uma área protegida, habitualmente visitada por turistas, onde foram filmados os famosos westerns de John Ford, ao mesmo tempo que fotografou o Central Park em Nova York, artificialmente construído num contexto urbano.

“Quando uma área é reservada para se manter natural, como é o caso dos parques naturais nos Estados Unidos da América ou noutros países, é obviamente uma construção. É uma construção no sentido de que é uma necessidade. Precisamos deste contacto com a natureza, precisamos de preservá-la, e temos duas hipóteses de o fazer. A primeira é limitando-a, criando fronteiras entre esta realidade e o resto. A segunda é construindo-a. É o caso dos parques dentro das cidades.”

Outro aspeto importante no seu trabalho é a relação entre o texto, ou a palavra, e a imagem. Vemos algumas imagens que fizeram parte da exposição Ilha apresentada em 2010 na Appleton Square em Lisboa, onde essa relação era evidente.

“A fotografia tem uma dimensão aparente e o texto leva-nos ao encontro de outras imagens. Quando vimos uma fotografia, é como se ficássemos naquele plano, o mundo fica congelado naquele segundo. A fotografia é brutal, nesse sentido. Enquanto que o texto tem a capacidade de nos transportar para outros níveis de narrativa. Acho que é isso que é interessante nesta ligação entre o texto e a fotografia ou o texto e o vídeo. No caso da Ilha, o texto era uma extensão da fotografia. Havia uma primeira frase em cada fotografia que despoletava uma pequena história. Esse texto era a possibilidade dessa fotografia continuar a existir.”

Mais adiante, um conjunto de fotografias de cena assinalam o período em que trabalhou com realizadores como Pedro Costa, Raquel Freire, Margarida Gil, Manoel de Oliveira, João César Monteiro, João Botelho, entre outros.

“O trabalho de fotografia de cena acompanhou uma parte do trabalho de imprensa que eu estava a fazer na altura. Conheci o João Botelho na revista Kapa, na qual trabalhei durante o tempo todo da sua existência, e acabei por conhecer o Paulo Branco, com quem o João trabalhava, que me falou em fazer fotografia de cena.
Tínhamos que fazer fotografias para a promoção do filme. Na altura entendemos que o trabalho de promoção deveria ser um trabalho dividido entre trabalho autoral e trabalho comercial. Fazia as fotografias que estavam expostas no cinema – pequenas fotografias de várias cenas dos filmes – e fazia fotografias do tipo making off do filme, com um lado mais autoral, no sentido em que privava com os atores e com os realizadores, fazia retratos. Esses retratos eram a preto e branco e, normalmente, eram feitos com cuidado, com tempo. Pude fotografar uma série de pessoas incríveis, por exemplo com o Werner Schroeter, a Isabelle Huppert, Manuel de Oliveira, Michel Piccoli. Foi uma grande aprendizagem.”

Conta-nos que Inês Oliveira fez um filme documental no seu estúdio precisamente sobre este período em que trabalhou no mundo do cinema. O filme encontra-se agora em fase de montagem.

“O filme é precisamente sobre este período em que trabalhei com todas estas pessoas e produzi estas imagens. É sobre como é que eu me movimentava ali. Havia uma diplomacia necessária, porque era uma equipa sobre grande pressão e eu aparecia ali pelo meio a tentar fazer as minhas fotografias.”

A imagem de um medalhão no qual se lê “não me beijes” intriga-nos. Mariana Viegas diz-nos que esse medalhão pertenceu ao seu pai. Na altura, este tipo de medalhões eram colocados no berço ou no carrinho dos bebés para evitar que as pessoas os beijassem transmitindo-lhes algum vírus. Esta fotografia faz parte de uma série de fotografias que fez dos objetos que o seu pai deixou na sua secretária após a sua morte e que esteve em exposição na Galeria da Casa A. Molder em 2023.

“Os objetos, as fotografias, acabam por estar sempre ligados a esta ideia de memória. Eu sou de uma família de arqueólogos, os meus pais eram os dois arqueólogos e a única irmã que tenho também é arqueóloga. Eu sou arqueóloga no sentido fotográfico, ou seja, a fotografia também é uma forma de arqueologia, ou talvez não seja de arqueologia, mas é uma forma de manter o passado ou de ter a certeza de que as coisas aconteceram.
Quando o meu pai morreu, deixou uma secretaria com uma data de objetos e eu decidi fotografá-los. Aqueles objetos para mim eram ele. Uma série de objetos quotidianos, completamente banais, que para mim adquiriram esse estatuto de tesouro ou de preciosidade. De que forma é que as nossas existências ficam ligadas a objetos e o que é que esses objetos são se não forem fotografados? É como se eles não existissem, pelo menos para mim.”

Por fim, falamos de projetos futuros. Somos encaminhados para uma mesa sobre a qual estão dispostas inúmeras fotografias impressas num pequeno formato. São imagens para o trabalho de um livro-monografia que está a desenvolver com a editora Pierre Von Kleist, e que deverá ser lançado em breve. Trata-se de uma viagem ao seu arquivo pessoal, que conseguiu finalmente reunir num único lugar, a quinta da Arrábida, após o seu regresso a Portugal, depois de ter vivido dez anos fora do país.

É um livro que decidimos que fosse uma visita ao arquivo. O meu arquivo começa em 88, quando eu tenho 18 anos. Começamos a olhar para as provas de contacto e a descobrir aquilo que é interessante nessas provas hoje em dia, numa perspectiva quase sociológica. O que é que se passava no final dos anos 80, anos 90, em Lisboa? Há imagens muito interessantes da cidade, que é uma Lisboa que já não existe. É esse mesmo o trabalho da fotografia. Há depois essa personagem, eu, e as pessoas que me rodeiam. E também todos os trabalhos que eu ia tendo. Trabalhos que eram essencialmente de imprensa. Houve também, durante quase 8 anos, o trabalho, essencialmente com o Paulo Branco, de fotografia de cena. A ideia é criarmos um objeto que não seja uma coisa exaustiva. É uma viagem afetiva a este arquivo, neste momento.”

Ao nível de exposições, na sequência da que está a decorrer na Escola da Vila no Porto Santo, Porta 33, terá em breve lugar uma exposição individual de Mariana Viegas na Porta 33 no Funchal, com curadoria de Nuno Faria.

“A ideia que nós tínhamos, eu e o Nuno, era que fosse uma exposição de retrato. Eventualmente ir buscar a este arquivo alguns trabalhos que possam fazer uma ligação com o trabalho que está no Porto Santo, que é um trabalho de retrato. O Nuno falou-me que estava a pensar em algumas fotografias do Pedro Costa que estiveram em Serralves na exposição Pedro Costa: Companhia. Há também outras fotografias que eu acho que são bastante interessantes. Há muitos autorretratos, que é uma coisa que eu ainda não explorei bem, mas que estou com uma certa vontade de explorar. Ainda não sei muito bem qual vai ser a constelação.”

O sol começava a pôr-se por detrás da serra. Deixámos a quinta na Arrábida com a certeza de que queríamos voltar.

Joana Duarte (Lisboa, 1988), arquiteta e curadora, vive e trabalha em Lisboa. Concluiu o mestrado integrado em arquitetura na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa em 2011, frequentou a Technical University of Eindhoven na Holanda e efetuou o estágio profissional em Xangai, China. Colaborou com vários arquitetos e artistas nacionais e internacionais desenvolvendo uma prática entre arquitetura e arte. Em 2018, funda atelier próprio, conclui a pós-graduação em curadoria de arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e começa a colaborar com a revista Umbigo.

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