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O sentido da vida é só cantar: Orfismos, Urdiduras, Sortilégios e Lances de dados, com Nuno Faria

Na Antiguidade Clássica, existiam dois loci classici acerca da relação interartística da poesia e da pintura. “A pintura é poesia muda e a poesia é um quadro falante”, apotegma de Simónides de Ceos (6 a.C.), evocado por Plutarco, e o famoso ditado de Horácio, “Assim como a pintura, a poesia”[1]. Enquanto o apotegma de Simónides de Ceos ilustra um impulso implícito de superar barreiras existentes para alcançar uma linguagem comum, o segundo, criado com o objetivo de superar as suas próprias limitações, foi compreendido através de uma comparação que provou que ambas as formas artísticas são compostas pela mimese. A História é disso reveladora, onde a analogia entre as artes visuais e a poesia se encontra ligada a princípios de verossimilhança e limitada a uma representação espelhada da realidade. Notando que as artes visuais e a poesia partilham um apelo visual, um evocar da imagética e, no entanto, abordam os sentidos por um meio diferente.

É nesta senda que Nuno Faria é convidado a tecer a curadoria de O sentido da vida é só cantar, exposição que, como um tríptico, celebra não só os dez anos de vida da zet gallery, em Braga, mas também os cinquenta anos do 25 de Abril e os cem anos do Manifesto Surrealista.

A exposição coletiva reúne obras de Alexandra de Pinho, Filipa Leal, Jorge Feijão, Mafalda Veiga, Marta Bernardes e Zélia Mendonça que, inserindo-se numa tradição da oralidade, desenha a articulação de obras distintas, a partir “das pesquisas empreendidas pelo poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898) nas últimas décadas do século XIX em torno da potência/papel do acaso no processo criativo e da implosão sonora e visual da palavra impressa”[2]. Procurando não cair numa visão analítica da exposição, é sobre esta abordagem que será construído este texto.

Ora, segundo Nuno Faria, a mostra parte de tal articulação, composta por dois veios. O primeiro constrói-se a partir da ideia de tecido, de tecer com obras, partindo da poesia e do desenho. O segundo veremos mais adiante.

Mallarmé, no seu ensaio The Impressionists and Edouard Manet (1876), desenha uma defesa substancial de Manet e dos impressionistas, afirmando que estes colocam o ar e a verdade no centro da sua obra. “A busca da verdade, própria dos artistas modernos, que lhes permite ver a natureza e reproduzi-la, tal como ela aparece (…), deve levá-los a adotar quase exclusivamente o ar como seu meio, ou, em todo o caso, a habituarem-se a trabalhar nele livremente e sem restrições”. Mallarmé procura definir o ar como “luz do dia (…) espaço com a transparência do ar apenas. A luz natural (…) que penetra e influencia todas as coisas, embora ela própria seja invisível”, um ar que é supremo e real e “domina despoticamente sobre tudo o resto”.[3]

A ênfase dada pelo poeta à “fusão ou luta (…) sempre continuada entre a superfície e o espaço, entre a cor e o ar” e à “metamorfose perpétua” sugere não só o imediatismo e o fluxo temporal, mas também a oscilação rítmica, a extensão, as lacunas e os intervalos. É disto exemplo a obra de Jorge Feijão, denominada #Políptico D (2021) que, tal como o nome sugere, é composta por um políptico, presente numa longa tradição pictórica religiosa da Idade Média, através de um retábulo de imagens com diferentes proveniências que entre elas articulam uma narrativa. Como no momento da aplicação do carvão sobre o branco que inaugura a página, através da ingenuidade de quem se vê, a si próprio, esquecendo até o traço que poderia falar mais alto. E, quando tal acaso conquistado gesto a gesto se alinha na mais ligeira e disseminada rutura, infalivelmente o branco regressa, gratuito antes, certo agora, para inferir o nada além de autenticar o silêncio do desenho.

É através do branco e do vazio que a palavra blanc assume um papel importante nas suas interpretações. Mallarmé associa os brancos da escrita e da leitura à ingenuidade, ao esquecimento, ao acaso, à disseminação, ao nada, ao silêncio, à transparência, ao ar, ao canto e à invisibilidade. Blanc remete para a página branca, não escrita, onde se podem inscrever e tecer as marcas de um traço, de um tempo. Do mesmo modo, o poeta cria associações com outros blancs, como véu, vela ou nuvem, como as Desenhuras com Versítulos (2024), título dos vários desenhos/pinturas de Marta Bernardes, que propõem uma visão sobre a memória e a mente que se desenha no papel, como exercício de catarse.

Um resgatar de histórias que se desprendem da autoria da artista e que, através da palavra associada à imagem, são envoltas em oferenda ao observador. Mas sugere, apesar das dificuldades que Mallarmé coloca ao leitor, o funcionamento dos espaços em branco (blancs), os intervalos, as pausas (brisures) e os espaçamentos da escrita e da leitura, associado frequentemente ao ritmo e à música, ao silêncio, ao nada (rien) e à não-significação.[4] O ar, tal como Mallarmé o utiliza, é semelhante a estas noções de blanc, construindo o segundo veio da exposição, mencionado por Nuno Faria. Onde, a partir da palavra impressa e através da página em branco, do tecido e do tecer, se constrói a ênfase em volta do ar e do vazio, tal como em Liberdade de Alexandra de Pinho que, sobre a palavra cosida, presenteia o observador com um retângulo vazio ou blanc.

O particular destaque de Mallarmé dado ao ar como meio para a poesia e para a música manifesta-se na utilização de conceitos como “ideia” e “aspeto”, que são facilmente deslocados para o conceito de ventriloquismo – que, como o ar, é o meio para a forma final, vocalizada na palavra. O sentido da vida é só cantar (2008), título de uma antologia de poemas de António Barahona, reúne um conjunto de vozes muito diverso que procura agenciar em forma de coral. Para isso, os artistas “devem adotar quase exclusivamente o ar como seu meio”, como afirma o poeta francês, ar este que é portador de uma “vida nem pessoal nem sensível”[5], como o corredor desenhado para Filipa Leal e Mafalda Veiga, pleno de tipos, palavras e blancs, um suspender do momento dito da palavra pensada, até à imagética que é evocada através de um apelo visual que ambas partilham.

Aqui, o ar reina supremo e real, como se possuísse uma vida encantada conferida pela magia da arte e da palavra dita, tal como o Oráculo de Delfos que através de um efeito ventriloquista torna real a palavra de Apolo, através do ar. O ar como matéria palpável de conceito e aspeto para uma cena envolta em crença. Crença esta que torna real a palavra do Oráculo como a própria palavra de Apolo; uma vida não pessoal nem sensível, mas ela própria sujeita aos fenómenos, assim convocados pela ciência e mostrados aos nossos olhos com a sua perpétua metamorfose.[6]

Ao longo do seu ensaio, Mallarmé ilustra o valor da “modernização” para a pintura e a literatura, explorando as “aspirações” do passado e a “frescura” que se encontra na “coordenação de elementos muito dispersos”.[7] Tal arranjo é resgatado por Zélia Mendonça, seja através de um torso feminino, Deusa Luça (2022), Deusa-Mãe (2024) ou pela profusão das cores e dos elementos inusitados de que abdica para os re(des)cobrir e nos arrastar para o sonho. Sonho que evoca cenários de um teatro surreal e que, ao mesmo tempo, parecem impregnados de um ritualismo com magia própria.

Numa carta a Henri Cazalis (1864), Mallarmé escreve sobre a sua aspiração enquanto escritor, de representar “não a coisa, mas o efeito que ela produz (…) todas as palavras devem desvanecer-se perante a sensação”.[8] Em O sentido da vida é só cantar, tal como na poesia de Mallarmé, as coisas dissolvem-se à medida que os pormenores são eliminados, as formas são abreviadas e os elementos vibram; a mimese e a convenção são negadas, os significados abandonados e, nesta lírica, através do ar, Nuno Faria é o aedo.

O sentido da vida é só cantar encontra-se patente até 27 de abril de 2024.

 

[1] Ver Henryk Markiewicz e Uliana Gabara, 1986, Ut Pictura Poesis …: A History of the Topos and the Problem, Baltimore: Johns Hopkins University Press e, Wendy Steiner, 1982, The Colors of Rhetoric: Problems in The Relation between Modern Literature and Painting, Chicago: University of Chicago Press.
[2] Nuno Faria in Folha de Sala da exposição O sentido da vida é só cantar.
[3] Stéphane Mallarmé, The Impressionists and Edouard Manet, in set. 1876, The Art Monthly Review and Photographic
Portfolio, Londres, p. 119.
[4] Ibid, 118.
[5] Ibid, 119.
[6] Note-se que, na verdade, o Oráculo é uma mulher, de nome Pítia, a primeira suprema-sacerdotisa do Oráculo de Delfos. Na Antiguidade Clássica, a transmissão da História e a memória da comunidade está associada à mulher, através da ideia de tecido e do ato de tecer. Tal como as moiras que teciam o fio da vida, também aqui, Nuno Faria observa que não é por acaso que esta exposição é composta, na sua maioria, por artistas mulheres.
[7] Ibid, 118.
[8] “Peindre, non la chose, mais l’effet qu’elle produit… toutes les paroles s’effacer devant la sensation.” Tradução de Margaret Werth. Stéphane Mallarmé, in carta para Henri Cazalis, 30 out. 1864, in Stéphane Mallarmé, 1998, Oeuvres complètes, vol. 1, ed. Bertrand Marchal, Paris: Gallimard, p. 663.

José Pedro Ralha (Chaves, 1994) é licenciado em História da Arte com especialização em Filosofia da Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Estudos Curatoriais, com a dissertação "A Instalação Artística através da obra de João Maria Gusmão e Pedro Paiva: Análise às obras 3 Suns, Falling Trees e Papagaio (djambi)", pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Colaborou em vários projetos como LAND.FILL, 2019, com Gabriela Albergaria para o Laboratório de Curadoria, Anozero '19 Bienal de Coimbra - A Terceira Margem, Terçolho, 2021, com João Maria Gusmão e Pedro Paiva, na Fundação de Serralves. Colaborou com a Fundação de Serralves e contribui com artigos e ensaios para a Umbigo Magazine. Atualmente trabalha no Museu e Bibliotecas do Porto como Produtor Executivo de Projetos Museológicos.

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